Cultura
Os EUA em forma de horror
A partir de histórias muito envolventes, a norte-americana Celeste Ng joga luz sobre as divisões raciais, os conflitos políticos e a desigualdade


Os Corações Perdidos, terceiro romance de Celeste Ng, autora campeã de vendas, está ancorado em dois conceitos fictícios: uma “crise” global que inclina o equilíbrio de poder internacional para longe dos Estados Unidos e uma peça subsequente de legislação norte-americana chamada Pact – a Lei de Preservação das Culturas e Tradições Americanas. Com rapidez assustadora, os Estados Unidos se transformam numa sociedade chauvinista, ignorante e violentamente hostil, governada pelo medo e o ódio racista – voltado, em particular, contra os asiáticos orientais.
Noah Gardner, o jovem herói meio americano, meio chinês do romance, cresce nesse ambiente perigoso, no qual a violência policial, a censura e a segregação são a norma. A mãe, uma famosa artista sino-americana que o abandonou com o pai quando era criança, inicia a trama enviando-lhe uma carta coberta de desenhos – já aberta e lida pelas autoridades. O que eles significam e qual foi o verdadeiro motivo do desaparecimento dela?
A partir desse mistério, Os Corações Perdidos engendra aventura, heroísmo e bravura em um cenário doloroso. Celeste Ng faz pela raça o que O Conto da Aia fez pelo sexo. À medida que descobre mais sobre as crises, separações e internações familiares e sobre o crescente autoritarismo que se seguiu, Noah é forçado a se encontrar como indivíduo e se posicionar como membro de uma comunidade.
Do começo ao fim, a escrita é rápida e equilibrada. Mesmo a descrição de uma sala comum é precisa: “Um sofá desbotado e gasto encostado na parede, uma mesa de jogo dobrada coberta de ferramentas. Uma única lâmpada sem luminária, a lâmpada nua olhando fixo”.
Celeste Ng combina, sem esforço, história familiar com conto de detetive. Seu retrato da mãe de Noah, Margaret Miu, permite que ela se divirta com as perguntas-padrão de debates em festivais de artes. Qual é o verdadeiro papel do artista na sociedade? A arte é expressão pessoal ou comentário político? Os artistas são poderosos ou impotentes? A criação é resistência? Isso pode fazer alguma diferença para os acontecimentos?
OS CORAÇÕES PERDIDOS. Celeste Ng. Tradução: Fernanda Abreu. Intrínseca (336 págs., 49,90 reais)
Margaret é, ao mesmo tempo, uma mãe extremamente amorosa, uma artista completamente absorta no seu trabalho e uma ativista política cujas criações inspiram o ativismo de outras pessoas. A visão de autora é ironicamente reconhecível. Em uma cena, Noah interrompe o trabalho de sua mãe para dizer que está com fome. Margaret “volta sobressaltada, olha para o relógio… Me pego trabalhando, diz ela, quase constrangida. Eu me esqueço de manter comida por perto”.
Embora o Pact e a crise sejam invenções, seria errado chamar o romance de profético ou futurista. Todos os elementos do cenário ficcional estão nas manchetes todas as manhãs. Celeste Ng descreve: “O Pact estava a décadas de distância, mas os pais dele já o sentiam: os olhos da vizinhança examinando cada movimento deles. Misturar-se era a melhor opção, eles decidiram”.
Embora os abusos cometidos contra os asiáticos orientais no romance sejam feios e dolorosos, eles serão conhecidos por qualquer pessoa que tenha uma consciência, ainda que superficial, da experiência negra americana: “No condado de Orange, uma marcha em protesto contra o preconceito antichinês transformou-se num confronto, com espectadores lançando ofensas, terminando com a tropa de choque, Tasers, um menino sino-americano de 3 anos atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo”.
Os Estados Unidos de Os Corações Perdidos já estão conosco. A partir dessas raízes sombrias, Celeste Ng cria uma história excepcionalmente poderosa e extremamente relevante. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
A tese central de O Grande Recuo (Todavia, 400 págs., 104,90 reais), do sociólogo Paolo Gerbaudo, é a de que, como reação aos desastres gerados pelo neoliberalismo e pelo populismo, o mundo verá, nos anos 2020, o retorno da mão forte do Estado – com o chamado neoestatismo.
Colaborador da revista The New Yorker, Hilton Als reúne, em Garotas Brancas (Fósforo, 360 págs., 99,90 reais), 12 textos que falam de artistas e um que fala de si. Do conjunto emergem reflexões sobre a cultura norte-americana, o racismo e a busca, tão humana, por aceitação.
Celebrado sobretudo como cronista, Luis Fernando Verissimo tem agora os seis romances publicados ao longo da vida – entre eles, O Clube dos Anjos e O Opositor – embalados em um bonito box lançado pela Alfaguara sob o título Caixa Todos os Romances (784 págs., 369,90).
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os EUA em forma de horror”
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