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Os donos da criação

Sylvie Forbin, das Nações Unidas, discute a encruzilhada em que a propriedade intelectual se encontra

Sobrevoo. Ex-executiva do grupo Vivendi e hoje à frente da Ompi, Sylvie esteve no Brasil para participar do Rio 2C - Imagem: Emmanuel Berrod/WIPO
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O setor cultural e de entretenimento foi, como se tem dito desde 2020, um dos mais impactados pela pandemia. As consequências do fechamento de salas de cinema, teatros e casas de show foram severas para artistas, produtores e empreendedores, e catalisaram uma série de transformações na forma de criar, consumir e distribuir conteúdo. Essas transformações, ao mesmo tempo que colocaram alguns modelos em xeque, mostraram o potencial de outros.

“As consequências foram tanto positivas quanto negativas”, constata, com dados e análises em mãos, Sylvie ­Forbin, vice-diretora-geral de direitos de autor e indústrias criativas da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), agência das Nações Unidas que procura liderar a criação de um sistema equilibrado de propriedade intelectual.

Formada pela Sorbonne e pelo Instituto de Estudos Políticos, Sylvie trabalhou 18 anos no Q, o Ministério das Relações Exteriores francês, e, como representante diplomática, especializou-se em cultura e regulação audiovisual. No mundo privado, Sylvie trabalhou no Grupo Vivendi, atuando nas áreas de telecomunicações e mídia. Desde 2016, está na OMPI.

Foi como representante da entidade que Sylvie desembarcou no Brasil na semana passada. Convidada do Rio 2C, evento sobre criatividade realizado na Cidade das Artes, no Rio, ela apresentou uma pesquisa inédita na abertura do evento e, depois, participou de um painel sobre o futuro do entretenimento.

Nesta entrevista concedida a C­artaCapital um dia antes de voltar para Genebra, Sylvie bateu em uma tecla: com a mudança nos modelos de produção e distribuição de conteúdos de cultura e entretenimento, a propriedade intelectual, espinha dorsal da economia criativa, torna-se ainda mais central para o desenvolvimento das indústrias locais.

“Com a força crescente das plataformas, o criador perdeu o poder de barganha”

No caso do audiovisual, o risco decorre de alteração no eixo de força do mercado: de 2020 para cá, as plataformas de ­streaming ganharam força, tornando-se também produtoras de filmes e séries.

Se o fluxo de capital das plataformas para a produção de conteúdo tem, de um lado, permitido às grandes produtoras brasileiras a continuidade e até o crescimento de seus negócios, de outro, as empresas se vêem obrigadas a transferir a totalidade de seus direitos de propriedade intelectual. Empresas como Netflix e HBO Max financiam os projetos desde o seu início, mas pedem, em contrapartida, a transferência do direito de propriedade. Com isso, elas podem explorar essas obras no mundo todo. Os produtores locais, por sua vez, são remunerados por uma taxa fixa, ou seja, não recebem uma porcentagem do lucro, como acontecia nas salas de cinema ou na TV.

CartaCapital: Para começarmos, seria interessante a senhora explicar, para quem não conhece esses conceitos, o que é o direito de propriedade e como ele se relaciona com o copyright.

Sylvie Forbin: A propriedade intelectual é a proteção de algo intangível, resultante do intelecto, como um poema ou uma invenção. Ela se divide em várias áreas, como a propriedade industrial, caso das marcas e patentes, e os direitos de autor. O interesse pela propriedade intelectual aumentou muito durante a Revolução Industrial, no século XIX. O reconhecimento desse direito foi uma ferramenta para que os criadores pudessem obter reconhecimento moral e financeiro pelas suas criações. Antigamente, o financiamento de artistas se dava, majoritariamente, pelo mecenato.

CC: Agora eu gostaria a que a senhora contextualizasse esse assunto em 2022. Neste momento, a questão dos direitos de propriedade parece ser a grande frente de batalha dos produtores audiovisuais brasileiros. Quando eles faziam filmes pensando, primordialmente, nas salas de cinema, ou produziam para a tevê paga, com incentivos públicos, as obras pertenciam a eles. Com as plataformas, a história mudou. Como se deu essa virada?

SF: Quando a Netflix surgiu, ela pagava pelo licenciamento de filmes e, sobretudo, de séries existentes. Ou seja, não era dona dos direitos de propriedade dessas produções. Mas esse sistema passou por uma revolução. A Disney, em 2020, lançou sua plataforma e fez uma integração vertical, passando a distribuir os próprios conteúdos por meio da ­Disney+. A novidade, nesse caso, foi a construção de uma plataforma exclusiva. Você não consegue ver o conteúdo da Disney em nenhuma outra plataforma. Outros serviços de streaming têm modelos semelhantes. A Amazon foi, pouco a pouco, entrando no audiovisual e hoje ela oferece conteúdo original para quem assina o Amazon Prime. O mesmo aconteceu com a Netflix, que, cada vez mais, produz o próprio conteúdo.

Modelos. O filme Tudo Bem no Natal Que Vem, cujos direitos pertencem à Netflix. O jogo Sky Warrior, criado pela brasileira Wildlife, que se tornou um unicórnio. Uma banda de K-Pop, da Coreia do Sul, país rentabiliza o copyright – Imagem: Wildlife, Republic of Korea e Netflix

CC: Talvez o leitor se pergunte por que os produtores trabalham para as plataformas e aceitam esse modelo e não fazem mais como antes, financiando os próprios projetos de outras formas…

SF: Enquanto as plataformas viram o número de assinantes crescer, as televisões perderam receitas publicitárias e as subvenções públicas se tornaram ainda mais escassas durante a pandemia. A transformação digital e a pressão sobre o sistema de janelas (no qual o cinema, historicamente, era a primeira janela), teve consequências para todo o modelo de negócios, aí incluído o financiamento. Embora o streaming tenha aberto oportunidades para que as produções circulem no mundo todo, os criadores precisam encontrar formas de financiar as próprias obras fora das plataformas para manter os direitos e distribuir seus filmes por outros meios. O que vemos, é que, com a força crescente das plataformas, eles perderam o poder de barganha.

CC: Historicamente, os grandes estúdios norte-americanos centralizaram a produção em Hollywood. Por que as plataformas têm interesse em produzir localmente? A Netflix tem bancado, inclusive, cineastas locais importantes, como o Pedro Almodóvar, na Espanha, e o Paolo Sorrentino, na Itália.

SF: Conforme expandem seu poder e se tornam relevantes em todos os mercados, as plataformas passam a ter interesse em realizar coproduções locais, ainda dentro da estratégia de busca por assinantes. Também os serviços de pós-produção foram descentralizados. Ao fazer essas coproduções, elas ficam com os direitos internacionais sobre as obras. Isso, inicialmente, pareceu bom para os produtores independentes, porque trazia dinheiro e acesso ao mercado global. Mas, agora, evidenciam-se a fragilidade e a vulnerabilidade dos criadores. Os produtores do mundo todo ficam nas mãos de uns poucos players, que, como vemos com a Netflix (que perdeu assinantes e viu suas ações caírem na Bolsa), também estão sujeitas às oscilações do mercado.

CC: Como isso tem se dado em outras indústrias, como games e música?

SF: O confinamento levou a um crescimento de 39% no tempo que as pessoas passam jogando videogames. O Twitch, a principal plataforma de streaming de jogos, viu a audiência subir 83% quando a pandemia começou. Em países como Brasil, Chile e México, os gastos com ­games aumentaram 52% com a pandemia. Houve também um grande crescimento dos modelos gratuitos, como o da chinesa Tencent. No Brasil, a startup Wildlife foi avaliada em mais de 1 bilhão de dólares, e uma pesquisa mostra que 73% dos desenvolvedores de games brasileiros geram propriedades intelectuais.

“Nesse cenário, os governos têm um papel a cumprir e a regulação é fundamental’’

CC: É uma realidade bem diferente da do audiovisual.

SF: Sim, mas não podemos nos esquecer de que os cinemas passaram dois anos fechados, ou entre aberturas e fechamentos, e perderam 70 bilhões de dólares em bilheterias. No caso da música, as perdas também foram grandes para os criadores, embora o mercado global de música gravada tenha crescido 24,3% – com o streaming representando 65% do mercado. A questão, nesse caso, é que a receita do streaming é muito baixa para os artistas, e eles não podiam fazer shows. No Reino Unido, 34% dos músicos pensaram em deixar a profissão na pandemia. No Quênia, mais de 80% dos músicos ficaram sem qualquer fonte de renda no período. As plataformas têm grande retorno financeiro, mas os artistas, não.

CC: Como se pode alcançar um maior equilíbrio? Via regulação?

SF: As rupturas na cadeia de valor do setor criativo requerem ajustes nos acordos existentes e o propósito da Ompi é buscar o consenso. A Covid-19 acelerou um tipo de inovação muito ligada às ofertas de serviços culturais e as indústrias e os trabalhadores não puderam implantar as mudanças na velocidade exigida pela pandemia e pela tecnologia. Nesse cenário, os governos têm um papel a cumprir e a regulação é fundamental. Ao mesmo tempo, é difícil regular um mercado tão novo e instável. Para isso, também é preciso avançar na sistematização de dados e indicadores. Estamos começando a construir uma ferramenta específica para medir a economia criativa na América Latina. Trabalhando com as mesmas ferramentas, é possível comparar um país com outro. Isso também contribui para que se chegue a uma regulação baseada em evidências de mercado que tenha sentido.

CC: Como a senhora define o papel da regulação do setor audiovisual?

SF: O sucesso do K-Pop, na Coreia do Sul, é resultado de uma regulação e de uma legislação que estruturaram o mercado. Esse ecossistema foi construído ao longo de muito tempo. O copyright, na Coreia do Sul, serviu como incentivo, inclusive, para o turismo. Os jovens querem conhecer o país por causa do K-Pop, das séries e dos filmes. Recentemente, a Coreia do Sul ganhou quatro posições no ranking de países mais inovadores, e ficou entre os cinco primeiros. O Brasil está na 57ª posição entre 142 países. Entre a América Latina e o Caribe, vocês aparecem em quarto lugar. Não é ruim, mas teria sentido estarem em primeiro, não? O País teria esse potencial. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os donos da criação”

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