Cultura
Os corpos presentes
A primeira exposição individual de Francis Bacon realizada no Brasil reúne mais de 20 obras vindas de vários países


Tornaram-se usuais, nas duas últimas décadas, as exposições de grandes nomes das artes visuais empacotadas para viajar o mundo. As obras, nesses casos, são escolhidas pela empresa responsável pela mostra e tendem a estar restritas a trabalhos menos relevantes e, quase sempre, em precário diálogo uns com os outros.
Dado o lugar do Brasil no mundo – não só em termos geográficos, mas culturais –,
é comum que aos museus do País reste apresentar esse tipo de exposição. Nesse sentido, o simples fato de não ser terceirizada tornaria Francis Bacon: A Beleza da Carne, em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp), um acontecimento relevante. Mas a mostra é, ainda, a primeira individual de Francis Bacon (1909-1992) realizada no Brasil.
A Beleza da Carne foi montada a partir de um recorte curatorial que insere o artista na representação queer e tornou-se possível a partir de um complexo trabalho de pesquisas e empréstimos realizado pela equipe liderada por Adriano Pedrosa, diretor artístico da instituição.
Até 28 de julho, estarão reunidos no 1º andar do edifício projetado por Lina Bo Bardi (1914-1992), na Avenida Paulista, 24 quadros produzidos pelo pintor irlandês ao longo de quatro décadas – desde o início de sua carreira até os anos 1980.
Os trabalhos vieram de instituições como a Tate, de Londres, o Museu de Arte Moderna e o Metropolitan Museum, em Nova York, o Stedelijk Museum, em Amsterdã, e a Fondation Beyeler, em Basel, na Suíça. Quase todos viajaram acompanhados de um courier – profissional que só sai de perto do quadro depois de vê-lo pendurado na parede do museu para o qual foi emprestado.
No catálogo produzido pelo Masp, composto de textos inéditos, pautados especialmente pela releitura de Bacon a partir de sua homossexualidade, a exposição é contextualizada também dentro da própria história do museu. Seu diretor-fundador, Pietro Maria Bardi (1900-1999), construiu, desde meados da década de 1940, uma coleção baseada na arte figurativa e, em especial, em representações humanas.
“Como pintor, você não pode deixar de sentir toda a beleza do colorido da carne”, dizia o artista
“Ainda que Bardi não tenha se aventurado muito pela arte do pós-Guerra em termos de aquisições europeias e, portanto, não tenha adquirido uma obra de Bacon (…), trata-se de um artista que faria muito sentido para nós”, escrevem Pedrosa e Heitor Martins, diretor-presidente do Masp. “Daí a importância e o significado desta exposição.”
Francis Bacon, por muitos considerado o maior pintor do século XX, não tinha, até aqui, sido visto de forma abrangente no Brasil. Sua presença esteve restrita a umas poucas obras exibidas na 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, e às pinturas Estudo do Corpo Humano (1949) e Figura Sentada (1961), ambas vindas da Inglaterra e apresentadas em exposições realizadas pelo próprio Masp em 2017 e 2018, respectivamente.
A Beleza da Carne, que integra a programação anual dedicada às Histórias da Diversidade LGBTQIA+, empresta seu nome de uma frase dita pelo pintor ao crítico David Sylvester, presente no seminal livro Entrevistas com Francis Bacon: A Brutalidade dos Fatos, publicado na década de 1970 em língua inglesa e lançado no Brasil em 1995.
Na conversa com Sylvester, como lembra a curadora Laura Cosendey no catálogo, Bacon relata o momento em que, diante da vitrine de um açougue, foi tomado por um inquietante fascínio: “Como pintor, você não pode deixar de sentir toda a beleza do colorido da carne”.
Essa carga simbólica, observa Laura, acompanharia todo seu percurso: “Se muitas vezes suas pinturas giravam em torno de transgressões a símbolos da cristandade, especialmente a crucificação, ou retratavam nus masculinos, um de seus temas de predileção, a carne também é matéria central de sua obra”.
A Bacon eram, sobretudo, os corpos que interessavam. E não quaisquer corpos, mas sim os masculinos, retratados de forma muitas vezes ambígua, com uma fusão entre desejo, proibição, violência e êxtase. Um contexto social que a curadoria faz questão de ressaltar é que parte da produção do artista deu-se em uma época na qual a homossexualidade era criminalizada no Reino Unido.
Certa vez, ao tentar falar sobre seu romance com Peter Lacy (1916-1962), vivido ao longo dos anos 1950, o artista definiu o arrebatamento amoroso “como uma doença”. Os corpos de Bacon, como descreve Laura, “irrompem na superfície da pele, excedendo seus limites, como se ele pintasse o avesso da carne”.
A experiência de estar frente a frente com essa “potência fantasmagórica” – expressão usada por Paulo Herkenhoff em outro texto do catálogo – extrapola qualquer recorte curatorial. Ao mesmo tempo, as leituras que cada novo contexto histórico propicia acentuam a complexidade das imagens de Bacon e desses corpos que, neste momento, estão presentes no Brasil. •
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os corpos presentes’
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