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Os corpos presentes

A primeira exposição individual de Francis Bacon realizada no Brasil reúne mais de 20 obras vindas de vários países

Os corpos presentes
Os corpos presentes
Fantasmagoria. Duas Figuras Com Um Macaco, de 1973 (acima), e Homem Em Um Lavatório, de 1954 (à esq.), são duas das 24 obras expostas até julho no Masp, em São Paulo – Imagem: The Estate of Francis Bacon/AUTVIS, Brasil, DACS/Artimage, London 2024 e The Estate of Francis Bacon/AUTVIS, Brasil/DACS/Artimage, London 2024/Prudence Coming Associates Ltd
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Tornaram-se usuais, nas ­duas últimas décadas, as exposições de grandes nomes das artes visuais empacotadas para viajar o mundo. As obras, nesses casos, são escolhidas pela empresa responsável pela mostra e tendem a estar restritas a trabalhos menos relevantes e, quase sempre, em precário diálogo uns com os outros.

Dado o lugar do Brasil no mundo – não só em termos geográficos, mas culturais –,

é comum que aos museus do País reste apresentar esse tipo de exposição. Nesse sentido, o simples fato de não ser terceirizada tornaria Francis Bacon: A Beleza da Carne, em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp), um acontecimento relevante. Mas a mostra é, ainda, a primeira individual de Francis Bacon (1909-1992) realizada no Brasil.

A Beleza da Carne foi montada a partir de um recorte curatorial que insere o artista na representação queer e tornou-se possível a partir de um complexo trabalho de pesquisas e empréstimos realizado pela equipe liderada por Adriano Pedrosa, diretor artístico da instituição.

Até 28 de julho, estarão reunidos no 1º andar do edifício projetado por Lina Bo Bardi (1914-1992), na Avenida Paulista, 24 quadros produzidos pelo pintor irlandês ao longo de quatro décadas – desde o início de sua carreira até os anos 1980.

Os trabalhos vieram de instituições como a Tate, de Londres, o Museu de Arte Moderna e o Metropolitan Museum, em Nova York, o Stedelijk Museum, em Amsterdã, e a Fondation Beyeler, em Basel, na Suíça. Quase todos viajaram acompanhados de um courier – profissional que só sai de perto do quadro depois de vê-lo pendurado na parede do museu para o qual foi emprestado.

No catálogo produzido pelo Masp, composto de textos inéditos, pautados especialmente pela releitura de Bacon a partir de sua homossexualidade, a exposição é contextualizada também dentro da própria história do museu. Seu diretor-fundador, Pietro Maria Bardi (1900-1999), construiu, desde meados da década de 1940, uma coleção baseada na arte figurativa e, em especial, em representações humanas.

“Como pintor, você não pode deixar de sentir toda a beleza do colorido da carne”, dizia o artista

“Ainda que Bardi não tenha se aventurado muito pela arte do pós-Guerra em termos de aquisições europeias e, portanto, não tenha adquirido uma obra de Bacon (…), trata-se de um artista que faria muito sentido para nós”, escrevem Pedrosa e Heitor Martins, diretor-presidente do Masp. “Daí a importância e o significado desta exposição.”

Francis Bacon, por muitos considerado o maior pintor do século XX, não tinha, até aqui, sido visto de forma abrangente no Brasil. Sua presença esteve restrita a umas poucas obras exibidas na 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, e às pinturas Estudo do Corpo Humano (1949) e Figura Sentada (1961), ambas vindas da Inglaterra e apresentadas em exposições realizadas pelo próprio Masp em 2017 e 2018, respectivamente.

A Beleza da Carne, que integra a programação anual dedicada às Histórias da Diversidade LGBTQIA+, empresta seu nome de uma frase dita pelo pintor ao crítico David Sylvester, presente no seminal livro Entrevistas com Francis ­Bacon: A Brutalidade dos Fatos, publicado na década de 1970 em língua inglesa e lançado no Brasil em 1995.

Na conversa com Sylvester, como lembra a curadora Laura Cosendey no catálogo, Bacon relata o momento em que, diante da vitrine de um açougue, foi tomado por um inquietante fascínio: “Como pintor, você não pode deixar de sentir toda a beleza do colorido da carne”.

Essa carga simbólica, observa Laura, acompanharia todo seu percurso: “Se muitas vezes suas pinturas giravam em torno de transgressões a símbolos da cristandade, especialmente a crucificação, ou retratavam nus masculinos, um de seus temas de predileção, a carne também é matéria central de sua obra”.

A Bacon eram, sobretudo, os corpos que interessavam. E não quaisquer corpos, mas sim os masculinos, retratados de forma muitas vezes ambígua, com uma fusão entre desejo, proibição, violência e êxtase. Um contexto social que a curadoria faz questão de ressaltar é que parte da produção do artista deu-se em uma época na qual a homossexualidade era criminalizada no Reino Unido.

Certa vez, ao tentar falar sobre seu romance com Peter Lacy (1916-1962), vivido ao longo dos anos 1950, o artista definiu o arrebatamento amoroso “como uma doença”. Os corpos de Bacon, como descreve Laura, “irrompem na superfície da pele, excedendo seus limites, como se ele pintasse o avesso da carne”.

A experiência de estar frente a frente com essa “potência fantasmagórica” – expressão usada por Paulo ­Herkenhoff em outro texto do catálogo – extrapola qualquer recorte curatorial. Ao mesmo tempo, as leituras que cada novo contexto histórico propicia acentuam a complexidade das imagens de Bacon e desses corpos que, neste momento, estão presentes no Brasil. •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os corpos presentes’

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