Cultura

Os cenários do novo cinema nacional

Das paisagens arenosas de “Animal Político” à luz opaca de “Mulher do Pai”, cineastas reinventam as alegorias dos desertos humanos e familiares

Cena do filme 'Mulher do pai', com Marat Descartes e Maria Galant
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Queria escrever, nesta semana, sobre o filme Animal político, alegoria do diretor Tião (sim, só Tião) sobre a relação bovina que nós, humanos, desenvolvemos com o mundo do consumo, das frases-feitas e respostas robotizadas. Trata-se da história de um sujeito que acorda, espera o ônibus no ponto, assiste TV, corre na esteira, frequenta lanchonetes, casas noturnas e que, num certo Natal, é assombrado por uma sensação de desajuste e falta de sentido.

Nada muito novo, até aí, não fosse este personagem uma vaca, acompanhada pela câmera em sua incursão pela cidade em direção ao deserto, onde busca algum fio-condutor da própria vida e recebe, em troca, o apoio unicamente de um aparelho programado para dar respostas rasas sobre qualquer pergunta.

Qualquer semelhança com o papel do Google o deserto de ideias do mundo contemporâneo não é mera coincidência. “A vida não é uma pergunta a ser respondida, é um mistério a ser vivido”, ensina o aparelho, evocando Buda. O problema é apreender este mistério andando sobre quatro patas.

O filme é um passeio por paisagens arenosas de Pernambuco e da Paraíba, onde a aridez do Brasil de 2017 ganha cenário. Uma pena ter ficado tão pouco em cartaz (em breve, segundo a distribuidora, estará disponível em streaming).

Por sorte o cinema brasileiro se renova, e do Sul, no outro extremo do país, vem uma outra grande novidade. Filme de estreia de Cristiane Oliveira, Mulher do pai é também repleto de alegorias, desta vez sobre as tensões das relações familiares.

A história é mínima: uma adolescente vive com a avó e o pai em uma vila remota do Rio Grande do Sul, quase na fronteira do Uruguai.

Todas as contingências parecem caber naquela casa fria e pouco iluminada, onde qualquer evento fora do eixo familiar, dedicado à tecelagem, soa como ameaça e todos parecem dispostos a manter uma rotina de vigilância e controle vendidos como cuidados.

A jovem vive às turras com a avó e o pai (o grau de parentesco entre eles não está claro no início; eles antes parecem irmãos ou primos distantes, e a elipse não é despropositada), que observam com desaprovação as ambições alimentadas por ela sobre o mundo fora dali – um mundo que não vê, apenas ouve falar.

O pai é cego, e isso não é o único simbolismo da história, embora sejamos o tempo todo tentados a estender as relações entre pais e filhos como uma condução a um lugar desconhecido e pouco palpável – no escuro, portanto. Pontes, prados, estradas e fronteiras são cenários explorados o tempo todo pela câmera para tratar de distâncias e distanciamentos. O filme foi rodado em uma vila de funcionários das estâncias de gado, com cerca de 200 habitantes.

Um dia a avó morre e a linguagem entre filha e pai deixa de uma intermediária. Um precisará cuidar do outro, mas nada, em família, é tão exato. Muitas vezes, essa ideia de cuidado se confunde com um mecanismo cruel de vigilância, controle e achaque emocional, elementos presentes nas melhores famílias.

As implicâncias diárias servem como disfarces da interdependência, daí a rejeição a tudo o que aparece àquela porta como estrangeiro – no caso, os uruguaios dispostos a cruzar a estrada e bagunçar aquela ordem.

Quando a professora de artes da jovem descobre que o pai, embora cego, tem pretensões artísticas e decide frequentar aquela casa, a própria fotografia do filme se desloca. Sai o ambiente limítrofe, asfixiante, e entra em cena a iluminação, contida nas referências às janelas de uma casa agora arejada, sem a sombra da morte ou do medo dos vivos. A iluminação acompanha a descoberta e redescoberta dos corpos e desejos desconhecidos ou asfixiados dos personagens.

Mas fantasmas estão quase sempre do lado de dentro, onde concentram-se as armadilhas e o medo de se perder a quem se ama, mesmo que este amor não seja visível nem nomeado.

Mulher do Pai tem no elenco os atores Marat Descartes e Maria Galant e já foi exibido no Festival de Berlim, no Festival de Guadalajara e no Festival Internacional do Uruguai. Entrou em cartaz na quinta-feira 22 nos cinemas de Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Niterói, Novo Hamburgo, pelotas, Porto Alegre, Recife Rio de Janeiro, Santa Cruz do Sul, Santos e São Paulo.

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