Cultura
Os caçadores de público
Na briga por espaço no circuito cada vez mais dominado por Hollywood o youtuber Luccas Neto vira super-herói


O canal de Luccas Neto no YouTube, o Luccas Toon, voltado ao público infanto-juvenil, tem 39,3 milhões de inscritos e acumula mais de 20 bilhões de visualizações. Os 173 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em 2022 levaram, juntos, 4 milhões de espectadores às salas.
Do encontro entre esses dois universos do audiovisual, o do YouTube e o do cinema, nasce Os Aventureiros: A Origem, em cartaz desde a quinta-feira 6. Trata-se de um projeto do influenciador digital encampado pela Warner Bros. e dirigido por André Pellenz, o nome por trás de Minha Mãe É Uma Peça: O Filme (2013) e da franquia Detetives do Prédio Azul, que inclui a série feita originalmente para o Gloob e três longas-metragens.
O último filme da série, Detetives do Prédio Azul 3: Uma Aventura no Fim do Mundo, lançado em 2022, fez 424 mil ingressos. Os dois primeiros filmes haviam feito mais de 1 milhão de espectadores cada um. “O cinema brasileiro está perdendo a sala de cinema como um espaço onde possa ser visto”, diz Pellenz, às vésperas de entrar novamente nessa briga.
Desde a pandemia, que manteve os cinemas fechados por alguns meses, e da crise atravessada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), a produção brasileira tem sofrido ainda mais para conseguir impor-se novamente no circuito exibidor.
Nenhum filme, em 2021 e 2022, fez mais de 1 milhão de espectadores ou ficou entre os dez mais vistos. Também está suspensa, desde então, a cota de tela, mecanismo que prevê que os cinemas reservem um determinado número de dias por ano para filmes brasileiros.
“No caso dos filmes ditos comerciais nunca se fala do trabalho feito pelo diretor”
“Minha Mãe É Uma Peça só foi lançado em 420 salas, há dez anos, porque havia cota de tela. Se não fosse a cota, o filme jamais teria estreado em tantas salas. E, se não tivesse conseguido a boa distribuição que teve, não teria tido a chance de fazer o sucesso que fez”, diz Pellenz, procurando relativizar, como fará ao longo da conversa com CartaCapital, o que significa, no Brasil, a ideia de um cinema comercial.
Nunca é demais lembrar que uma produção hollywoodiana custa, em média, 150 milhões de dólares e que raros são os filmes brasileiros com orçamentos superiores a 10 milhões de reais. Os Aventureiros: A Origem, de acordo com o documento disponível no site da Ancine, custou pouco mais de 3 milhões de reais. Este é, inclusive, o teto do mecanismo legal, baseado em renúncia fiscal, criado para incentivar as distribuidoras estrangeiras a coproduzir filmes no País.
Até o fechamento desta edição, a Warner Bros. não tinha informado o tamanho do circuito de Os Aventureiros: A Origem. Mas, no último fim de semana, o filme ocupou, em sessões de pré-estreia, 468 cinemas. Super Mario Bros. foi lançado em 752 cinemas – ocupando várias telas em um único complexo. Em 2022, Avatar: O Caminho das Águas, foi lançado, simultaneamente, em 2,8 mil salas.
É esse contexto que leva Pellenz a tratar o filme de um dos mais bem-sucedidos influencers do País não como um tiro certo, mas como uma aposta que diz respeito ao setor cinematográfico brasileiro como um todo. “Se o Luccas, com seu carisma, e a Warner levarem as pessoas ao cinema, teremos vencido mais uma batalha”, diz. “E também mais um estigma: aquele de que o cinema brasileiro não pode ter um super-herói de capa.”
Sim, porque Luccas e seus amigos viram super-heróis. “Me interessa a ideia de adaptar coisas”, conta o diretor, pontuando que Minha Mãe É Uma Peça era um stand-up e D.P.A. uma série. “O cinema nasce imitando truques mágicos, depois vai adaptar livros, músicas… O cinema é uma esponja que absorve as diferentes linguagens. Por que não adaptar um super-herói vindo da internet?”
Pellenz diz ter se acostumado, ao longo de sua trajetória, a ver muita gente torcer o nariz para seus projetos. Embora hoje a dona Ermínia de Paulo Gustavo (1978-2021) seja uma quase unanimidade, no começo não foi assim. E tampouco foi fácil achar quem topasse distribuir D.P.A: “Me diziam que não havia público para um filme infantil brasileiro”.
Nesse segmento, os campeões de bilheteria seguem sendo, de fato, os filmes dos Trapalhões, nas décadas de 1970 e 1980, e os da Xuxa, até o início dos anos 2000. Na última década, as produções que romperam a barreira do 1 milhão de ingressos foram as da Turma da Mônica, D.P.A. e aquelas derivadas da novela Carrossel.
Gênero. Pellenz é o cineasta por trás do sucesso Minha Mãe É uma Peça (2013) e da franquia infanto-juvenil Detetives do Prédio Azul – Imagem: Downtown Filmes/Globo Filmes e Paris Filmes/DT/Simba Content
“Uma comédia adulta, seja aqui, seja nos Estados Unidos, se passa num restaurante, na rua, ou seja, a gente não precisa recriar mundos ou explodir um posto de gasolina”, diz Pellenz, tateando os desafios da disputa com as animações e filmes de super-heróis vindos de Hollywood.
O filme de Luccas Neto é uma aventura de ficção científica que envolve a ida para outras dimensões, máquina do tempo, pedras mágicas e cenas de luta. O diretor conta, com orgulho, que optou pelo formato 2:35, o Cinemascope, e que fez um filme todo surround. “O Luccas já faz muito sucesso no streaming, mas o filme tinha de ter cheiro de cinema”, diz.
Uma de suas primeiras providências para tirar o youtuber de seu lugar de hábito foi dar a ele a dimensão da tela grande. “Filmei o nariz dele e disse: ‘Olha o seu nariz na tela de cinema: ele tem 2 metros!’. Eles entenderam isso muito rapidamente e se desprenderam da maneira de fazer YouTube, dos cacoetes.”
Pellenz adora falar sobre seu ofício e não nega sentir falta de ser visto como um diretor de cinema, que, assim como seus colegas que têm obras selecionadas para festivais, faz opções de linguagem. “É curioso como, no caso dos ditos filmes comerciais, nunca se fala do trabalho feito pelo diretor. É como se não houvesse uma direção ali. Se eu disser que não sinto falta de outro tipo de reconhecimento, não é verdade”, admite. “Mas nada substitui a sensação de ver uma sala cheia se emocionando com o filme que você fez.”
“Não fosse a cota de tela, o filme do Paulo Gustavo não teria tido a chance de fazer sucesso”
Formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, Pellenz começou a carreira no início dos anos 1990, momento no qual o cinema brasileiro tinha praticamente acabado. Ele trabalhou na finalização de Matou a Família e Foi ao Cinema (1991), de Neville de Almeida, mas logo migrou para a publicidade. “Havia dois lugares onde se podia trabalhar: na TV Globo e na publicidade”, diz. “Estudei Cinema para fazer cinema, mas também sempre precisei viver da minha profissão, até porque não sou herdeiro nem tenho salário fixo.”
Sua primeira ficção foi a série Natália (2011), premiada no FIC-TV, projeto criado pelo Ministério da Cultura com o objetivo de produzir, para a tevê pública, um conteúdo juvenil que escapasse dos estereótipos de Malhação.
O edital do programa recebeu 225 propostas e selecionou oito para a realização de um piloto. Dentre os pilotos, três foram escolhidos para ser produzidos. Natália foi um deles. Lançada em 2011 na TV Brasil, a série chamou atenção do público e da crítica e, depois, foi adquirida pela TV Globo, pela Sony e Universal Channel.
“Não sou, nem nunca fui, o cara só dos projetos comerciais”, diz, para logo em seguida contar que acabou de concluir um outro longa-metragem, chamado Fluxus. Trata-se, segundo ele, de uma distopia em preto e branco. E, embora tenha negociado o filme com a Paramount, Pellenz tem vivido, com esse projeto, o que vivem muitos de seus colegas de ofício: não está conseguindo lançá-lo em cinema. •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
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