Cultura
Os afetos na virtualidade
Em A Casa de Doces, Jennifer Egan apresenta um retrato sagaz da vida mediada pela tecnologia


Se havia alguma dúvida de que Jennifer Egan é a herdeira da crônica da pós-modernidade de Don DeLillo, seu romance mais recente, A Casa de Doces, dissipa qualquer questionamento. No livro, uma espécie de continuação – ou irmão espiritual – de A Visita Cruel do Tempo (2010), ganhador do Pulitzer, a autora, além de retomar personagens e situações, trabalha sobre uma estrutura que, ao mesmo tempo que remete ao livro anterior, se apresenta como algo totalmente novo.
A autora, de 60 anos, sabe que a grande questão que se coloca para quem deseja escrever sobre a contemporaneidade é como dar forma literária à experiência da atualidade, tão marcada pela presença da tecnologia. E Jennifer Egan encara esse desafio.
Um dos seus objetivos no novo livro é entender como os gadgets se tornaram uma extensão do nosso corpo e como os relacionamentos humanos são moldados e mediados pelas redes sociais e pelas tecnologias que vão surgindo. Ela criou, para a trama, o Cubo da Consciência Mandala e o Domine seu Inconsciente, que permitem às pessoas fazer um upload de suas mentes num disco rígido próprio para uso humano, e não computadores.
A CASA DE DOCES. Jennifer Egan. Tradução: Débora Landsberg. Intrínseca (384 págs. 79,90 reais)
A partir desses devices, Jennifer Egan constrói uma narrativa marcada por uma teia de personagens e ações interconectadas, com trânsito livre entre passado e presente. Alguns personagens de A Visita Cruel do Tempo emergem aqui e ali, e trazem, para além das conexões entre os dois livros, um grande painel de como vivemos nos últimos anos.
A Casa de Doces é composto de fragmentos, estruturados como capítulos que se conectam, ora de forma sútil, ora de forma bem explícita, por meio de personagens e ações. O primeiro capítulo é sobre Bix Bouton, milionário da indústria tecnológica, dono da Mandala, criada no fim dos anos de 1990.
Ao romper com a ordem cronológica da narrativa, a autora dá forma a uma das caraterísticas da contemporaneidade: a fragmentação de nosso cotidiano, gerada, sobretudo, pela presença da tecnologia. Ao radicalizar a experiência com a virtualidade, com o Cubo da Consciência Mandala, por exemplo, a autora nos mostra o quão tênue é a estrutura que nos mantém conectados aos relacionamentos e vivências reais.
É curioso pensar que A Visita Cruel do Tempo, escrito mais de dez anos atrás, continha um jogo de regras: cada capítulo era protagonizado por um personagem e era autônomo, ou seja, cada um tinha um tom e um ponto de vista. Mas, agora, um pouco como nas séries de tevê e streaming que tão popularizadas foram desde então, a trama é intrincada e cumulativa, ainda que a leitura na ordem facilite a apreensão dos sentidos da parte do leitor.
Nesse todo, há alguns experimentos mais radicais do ponto de vista formal. O capítulo Lulu a Espiã, 2032, por exemplo, se passa no futuro, e é narrado em segunda pessoa, como se a personagem estivesse criando uma espécie de manual de instruções de como se agir nessa profissão. Originalmente, o texto foi publicado no Twitter, em 2012. Já o capítulo, Ver Abaixo é composto exclusivamente de uma troca de e-mails.
Ao colocar a tecnologia como mediadora das relações humanas, Jennifer Egan aponta um futuro talvez um tanto soturno, no qual seremos dependentes da virtualidade para estabelecer e manter os nossos laços de afeto. Sua prosa, por outro lado, escancara a condição humana de maneira divertida e luminosa. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
A argentina Aurora Venturini, morta em 2015, deixou mais de 40 livros escritos. Aos 85 anos, ela lançou As Primas (Fósforo, 160 págs., 64,90 reais), uma história sobre as famílias, contada a partir do ponto de vista das mulheres, tornando a ficção um exercício memorialístico.
Em As Américas: Um Sonho de Escritores (Estação Liberdade, 336 págs., 65 reais), Philippe Ollé-Laprune faz uma imersão nas viagens literárias, rumo à América Latina, realizadas por autores como D.H. Lawrence, para o México, Zweig, para o Brasil, e Hemingway, para Cuba.
Sai pela Todavia uma nova edição do memorável Os Ratos (192 págs., 64,90 reais), escrito em 1935 por Dyonélio Machado. A sina de miséria e humilhação de Naziazeno, movido pela tentativa de pagar o leiteiro e garantir a alimentação do filho, mantém-se dolorosamente atual.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os afetos na virtualidade “
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