Cultura
Onde sopra o maestrale
Na bela Córsega, uma música originalíssima se perpetua no dialeto insular
Por Oliviero Pluviano
Das colinas de Gênova, a cidade italiana onde nasceram Mino Carta e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao amanhecer ou anoitecer de um dia de fevereiro tornado límpido e transparente pela tramontana, o vento frio do norte, é possível avistar ao longe, ao sul, montanhas cobertas de neve que se erguem da silhueta escura de uma grande ilha. É a Córsega, que por 500 anos esteve sob o domínio de Gênova e hoje, desde o fim do século XVIII, é território francês.
Antes de me mudar para o Brasil, fui lá muitas vezes, percorrendo seu litoral em um veleiro ou chegando de balsa a Bastia e à capital Ajaccio, a cidade onde nasceu Napoleão Bonaparte. Tomava o trinighellu, como é chamado no dialeto local, semelhante ao italiano, o pequeno trem que em quatro horas atravessa toda a ilha, com uma vista deslumbrante da sua cadeia montanhosa.
A estrada de ferro, construída em 1888, é, segundo alguns, a mais pitoresca da Europa. Também atravessa uma ousada ponte projetada por Gustave Eiffel e, no inverno, com a neve, oferece a experiência única de passar dos recolhidos povoados antigos do interior ao litoral selvagem varrido pelo maestrale, o vento de noroeste .
Descendo na estação de Vizzavona, a meio caminho entre Bastia e Ajaccio, também fiz um trecho da GR20, a Grande Randonnée, trilha que atravessa a Córsega de norte a sul e é considerada o trekking mais difícil do Velho Continente. Em média são necessários 15 dias para percorrer 200 quilômetros, com 12 mil metros de desnível, mas a “flecha” das corridas de montanha, o catalão Kilian Jornet i Burgada, de 25 anos, em 2009 levou apenas 32h54.
Mais tranquilo e confortável é conhecer a Córsega de motocicleta em maio, junho ou setembro, para evitar o rush de turistas. Com uma Harley-Davidson, cujo piso foi muito exigido por causa das curvas intermináveis e fechadas das estreitas estradas corsas, cheguei ao fabuloso terraço elevado acima do mar, decorado pela série de colunas que aparecem na foto, com vista para a Baía de Porto, na costa oeste da ilha.
Esse hotel charmoso em Piana se chama Les Roches Rouges e é gerenciado por Mady, a simpaticíssima proprietária que desenforna para seus clientes mais queridos uma indescritível soupe de poissons e um cordeiro com velouté de castanhas digno de um Nobel para a gastronomia. No site do hotel, com preços honestos, Madeleine Dalakupeyan colocou uma música corsa muito comovente.
Já são 35 anos que o grupo A Filetta (a samambaia, na língua corsa) retoma com competência a tradição oral insular, tendo alcançado uma perfeição à Hilliard Ensemble. São sete homens que cantam a cappella (sem acompanhamento instrumental), uma música originalíssima, porquanto antiga, com solistas como Jean-Claude Acquaviva, capazes de entoar agudos ornamentos árabes enquanto os demais tecem um coro semelhante ao baixo de conjuntos sardos, como os Tenores di Bitti (YouTube Remunnu è Locu), só que mais articulado e mais doce.
Também ouçam no YouTube Paghjella di l’Impiccati e Rex Tremendae e viajem nas gravações dos 13 álbuns produzidos a partir de 1978. Ouvindo a tocante L’altru Mondu é possível reconhecer as influências italianas nessa língua complexa, mistura de toscano, napolitano, sardo e genovês, até agora sem componente francês.
O tríptico da música popular mediterrânea da Córsega e da Sardenha se fecha com os Trallalleri em Gênova, cantos polifônicos harmonizados por oito ou nove pessoas, todas do sexo masculino (raras exceções), como nas execuções insulares.
Característica dessas antigas composições lígures é a voz de contralto, cantada em falsete por um homem chamado em dialeto genovês de bagascetta (a putinha), e chitara (o violão), voz com função rítmica obtida com o dorso da mão na frente da boca. Ouçam os coros Trallallero pelas ruas de Gênova na Noite Tricolor, diante de um prato de linguine al pesto acompanhado com batata, vagem e azeite extravirgem.
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