Cultura

Onde os velhos não têm vez

O filme “Nebraska” toca na ferida ao mostrar uma dura transição: quando os filhos se tornam “pais” dos próprios pais. Por Matheus Pichonelli

Woody Grant (Bruce Dern) e o filho, David (Will Forte), em cena do filme Nebraska
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Fui ao cinema com um pé atrás para assistir Nebraska, um dos concorrentes ao Oscar de melhor filme de 2014. Estava escaldado com os últimos filmes de Alexander Payne, cineasta das autodescobertas e das mudanças bruscas nas tais estradas da vida: todos começavam bem e, em algum momento, se perdiam. Foi assim na despedida de solteiro de Sideways, na viuvez repentina do personagem de Jack Nicholson em As Confissões de Schmidt e na venda de um terreno da família em Os Descendentes. Em comum, todos tinham uma estrada a levar para algum lugar físico e desembocava, em tese, no eu profundo de seus protagonistas. Mas a sutileza da proposta sempre dava lugar a um gongo com mensagens edificantes típicas dos livros de autoajuda. E todos saíam das sessões com o espírito afagado e com a sensação de que viver e amar valem sempre a pena, não importa o preço que se paga por isso. Parecia meme de mensagem de Facebook, mas levava duas horas para ser dita. E cansava.

Em Nebraska, muitos desses elementos estão presentes. Há uma estrada, uma viagem (longa) e um conflito familiar espocando. Em algum momento, pensei, Payne vai interromper a viagem, mais ou menos como um apresentador frenético de tevê, e gritar: “para tudo, agora vou fazer você chorar”.

Desta vez, no entanto, todos sobrevivemos. E Nebraska se tornou o que os outros filmes do cineasta pretendiam: uma grande história sobre um drama humano e familiar. Tudo nele está na medida e a própria filmagem, em preto e branco, reforça esse exercício de contenção.

No filme, Woody Grant (Bruce Dern) recebe um informe publicitário, dessas que apagamos todos os dias na caixa de e-mail, informando que ele tem a chance de se tornar um milionário. Velho, alcoólatra e com sinais de esclerose, ele acredita na lorota e começa a atazanar a vida da mulher e dos filhos, David (Will Forte) e Ross (Bob Odenkirk), espécies de âncoras do bom senso a avisar ao pai que o prêmio é uma farsa. Woody, no entanto, parece indisposto a se desfazer da fantasia.

E por que deveria?

O prêmio torna-se uma obsessão: ele sai a pé de sua casa todos os dias, em Montana, em direção a Lincoln, no Nebraska, onde poderia sacar o prêmio. É como sair a pé de São Paulo até Florianópolis para buscar um brinde inexistente.

Todos os dias a família se mobiliza para busca-lo no caminho e convencê-lo de que a busca não faz sentido. A princípio, a mulher, interpretada por June Squibb, chega a sugerir, não se sabe se a sério ou não, que o melhor seria interna-lo em um asilo. Mas David, o filho mais novo, resolve a questão de outra forma. Vendo que a teimosia do pai não teria fim, respira fundo e resolve a alimentar a fantasia. E decide levá-lo até o Nebraska para (não) resgatar o prêmio.

É quando Woody deixa de ser um inquilino incômodo em um mundo concreto e passa a ser o anfitrião de um mundo próprio. No caminho, param para descansar em Hawthorne, cidade-natal de Woody, e o que se segue é a inversão de uma sentença de Raduan Nassar no livro Lavoura Arcaica: “não importa para onde vamos, estamos sempre voltando para casa”. No caso de Woody, não importa para onde vai: ele está sempre fugindo de casa. O cenário é composto por um país empobrecido, esquecido e decadente, que não está no cartão-postal americano. As cidades parecem ter sobrevivido a um bombardeio: não só não têm cor (por óbvio) como não têm alma. Os EUA são a terra das oportunidades, mas todos naquele pedaço de chão parecem à beira de uma falência humana, física e financeira: as perspectivas econômicas, como a fala dos personagens, são escassas. Péssimo lugar para se passar quando se descobre milionário.

Entre casas envelhecidas, ruas empoeiradas e bares de música-fossa e decorações duvidosas, não há o que se fazer a não ser beber, assistir televisão e buscar assuntos triviais com os parentes visitantes. Em uma das cenas, os primos mais jovens passam longos minutos em silêncio a olhar em direção ao nada. A falta de intimidade patente é quebrada quando um deles pergunta a David: “qual é o motor do seu carro?”.

Este tédio presente em um cenário de desolação faz de Nebraska uma história sobre a desconstrução dos sonhos, seja o de se tornar milionário e acertar as contas com o passado, seja o de recuperar um juízo perdido.

Envelhecer é se dar conta de que deixamos de ser filhos e nos tornamos pais. Não pais dos nossos filhos, mas dos próprios pais. A diferença é que a paciência aos filhos é um recurso infinito; aos velhos, um karma. A perspectiva de crescimento faz da infância um terreno lúdico do sonho e das indagações: as obviedades escancaradas por elas apontam uma realidade viciada da qual se tira sorrisos e lições. Por serem óbvias, nem sempre temos as respostas para as perguntas das crianças. Ou rimos ao chegar à conclusão de que nunca nos perguntamos sobre determinadas respostas nem tínhamos observado certa questão sob certa ótica – mais ou menos como quando uma personagem infantil de Guimarães Rosa diz achar que um ovo se parece com um espeto. Ou quando a música-tema dos dias de festa diz que a vida é bonita – é bonita e é bonita – graças à pureza das respostas das crianças.

No caso de Woody, o mundo também é observado sob a ótica infantil. Uma ótica pura e não contaminada (ou descontaminada) por convenções. Ele acredita que pode se tornar um milionário da mesma forma que uma criança pode acreditar que um papel escrito cem reais vale o mesmo que uma nota de cem reais (não sei vocês, mas eu acreditava). Ou que as pessoas pedem dinheiro a ele porque realmente precisam, e não simplesmente porque sabem calcular o custo das fraquezas e das oportunidades diante delas.

Ainda assim, é a partir desse olhar, ora chamado senil, que as fantasias dos adultos são desconstruídas, entre elas as do amor e do casamento. Em um tempo em que dizer o quanto se ama se tornou imperativo, Woody e seus cabelos despenteados e barba por fazer deixam claro o enfado sobre a ditadura da felicidade. Em uma conversa com o filho, recém-separado, com emprego instável e muitas dúvidas na cabeça, Woody é questionado quando soube que estava apaixonado pela mulher. Ao que ele responde sem delongas:

– Nunca estive apaixonado pela sua mãe.

– Então por que vocês se casaram?

– Porque ela queria.

– E vocês planejaram ter filhos?

– Não.

– E por que tiveram?

– Porque eu gostava de transar. E quando você gosta de transar, os filhos são uma consequência.

Para o espectador, a fala brutalizada do personagem despido de eufemismos é uma afronta  – enquanto isso, há quem enlouqueça em pleno estado da razão e se dope diariamente diante da angústia sobre o que o filósofo Vladimir Safatle chama de “afetos contraditórios”: nem todos conseguem sentir o que todos dizem ser necessário sentir. Mas quem disse que amar é só plenitude? Quem disse que ele não pode ser um ato não calculado? Ou algo sobre o qual não temos nada a dizer porque não o entendemos?

Por trás de uma aparente ingenuidade e apego a velhas manias, Woody parece cultivar uma coerência em sua lógica que tanto causa estranhamento. Essa lucidez desautorizada permite jogar luz a um ideal familiar socialmente aceito. Por isso incomoda: porque os velhos, a certa altura da vida, voltam a ser crianças, e crianças, velhas ou não, são desapegadas o suficiente das regras mundanas para apontar que o rei está nu. Assim como as ruas e as cidades de prosperidades escassas do filme, o personagem desdenha dos enfeites e eufemismos das relações humanas ou familiares. É como se dissesse: “se você não correr do ponto de origem, o ponto de origem te esfola”. É essa a fuga que Woody parece empreender.

Essa desilusão é patente também em relação ao próprio país: no meio do caminho, pai e filho param para observar o Monte Rushmore, onde estão esculpidos os rostos de quatro dos principais presidentes dos EUA – e um dos símbolos da megalomania americana. Eis a emoção de Woddy em relação à obra e ao programa sugerido pelo filho: nenhuma.

Ao mesmo tempo, somente quando esse mundo de imperativos sobre afeto e obrigações é desnudado de cima a baixo que a relação truncada entre o pai e o filho ganha um contorno humano. Torna-se assim mais honesta e quase viável. Essa descoberta, parece dizer o diretor – desta vez com um balaço no alvo – é dura, cansativa, ambígua e às vezes demolidora. Mas é mais profunda do que qualquer declaração efusiva de amor.

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