Cultura

Ode ao fracasso

A reação aos modelos de perfeição ganhou voz nos filmes e discursos do Oscar 2015, que consagrou a história de um herói decadente e atormentado

Cena de Birdman, história de um ator atormentado que levou o Oscar de melhor filme em 2015
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Vivemos em listas fechadas. Nas escolas, livrarias, mesas redondas ou programas de auditório, o que não faltam são fórmulas prontas para obter o sucesso em poucos passos. “Vencer” é um imperativo moral, e seus semideuses berram nas nossas caras em capas de revistas, livros motivacionais ou talk shows. “Se você quer, você pode”, dizem, antes de distribuírem ordens imediatas para emagrecer, alisar os cabelos, conseguir qualidade de vida, a barriga tanquinho, melhorar o rendimento sexual, a potência do motor, passar de fase no videogame, decifrar os códigos de múltipla escolha, encontrar a pessoa certa, ser feliz a dois, amar a Deus sobre todas as coisas, o trabalho como a si mesmo e os filhos como a uma etapa indenizatória da vida que não alcançamos.

Os fracassados estão em outras editorias. Estão nos depósitos do esquecimento, nas clínicas de reabilitação (do vício ao peso ideal), nos guetos para infectados, nas páginas policiais. Se eles caíram em tentação ou recaída, era porque não tentaram nem se esforçaram o suficiente. O sucesso só dependia deles, mas eles sucumbiam. Não decifraram a ordem que mandava ser correto, prudente, alegre e constante como as pessoas do comercial de supermercado e da margarina que nos lembravam todo santo dia que a felicidade era um pote de ouro destinado aos bem alinhados.

Em nome desse pote de ouro, e da culpa por não alcança-lo, desenvolvemos angústias, pânicos e ansiedades para lidar com um evento não programado nas fórmulas do sucesso: a vergonha. Nessa fórmula, nem mesmo o cinema, povoado de roteiros com variações sobre o mesmo tema, nos poupa. Os heróis interpretados por outros heróis que recebem um chamado, hesitam, aceitam, enfrentam uma corrida de barreiras e adversidades e triunfam no pódio de chegada com beijo de namorada. A história dos vitoriosos é a história do mito do homem moderno, e a eles o circuito convencional de cinema, mais do que qualquer outra expressão artística, sempre prestou tributos.

Neste ano, porém, algo parecia fora da ordem na festa de premiação do Oscar. Na disputa pela categoria principal, rareavam os roteiros de presidentes que fazem a escolha certa e entram para a história, agentes dispostos a arriscar a vida por reféns no Irã, garotos pobres que aprendem com a vida antes de se tornarem milionários ou artistas que preservaram os talentos diante dos novos tempos, novos sons e novas cores. Desta vez a Academia decidiu fazer uma concessão ao fracasso. Pois é disso que se trata Birdman – A Inesperada Virtude da Ignorância, filme de Alejandro González Iñarritu vencedor do Oscar na categoria principal, direção e fotografia. E disso falava boa parte dos indicados.

Riggan Thomson, personagem interpretado por Michael Keaton, é o rosto do fracasso descrito por Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa, no poema Tabacaria. Consagrado na fantasia de super-herói, como Keaton, ele quis tirar a máscara quando estava grudada à cara para mostrar seu verdadeiro talento. Quando a tirou e se viu ao espelho, estava velho, envelhecido, não sabia mais a qual máscara pertencia. Como em outro poema do gênio português, estava farto de semideuses, os campeões em tudo que pareciam jamais ter tomado porrada na vida – mal sabia ele que por trás do palco e da petulância os colegas eram todos retumbantes fracassos, emocionalmente frágeis, inseguros, brochas, angustiados, ressentidos e amortecidos por remédios e bebidas. A derrota dupla Thomson e Keaton na disputa pelo Oscar de Melhor Ator viria a calhar: não premiá-los era quase um exercício de metalinguagem.

Criador e criaturas não estavam só. Dos indicados a melhor filme, todos, de alguma forma, contavam histórias de indivíduos imperfeitos, comuns ou atormentados em busca da consagração. A começar pelo sniper americano interpretado por Bradley Cooper, um típico cidadão comum que acreditou nas lorotas da guerra, virou máquina de moer gente e se tornou um fantasma de si mesmo ao voltar para casa. O desfecho, longe do heroísmo planejado por Clint Eastwood, é trágico, como é trágico o destino do homem que catapultou a ciência da computação para vencer os nazistas em O Jogo da Imitação e foi condenado em seu país por causa da homossexualidade. Em A Teoria de Tudo, a história se descola do roteiro da superação de seu protagonista, o cientista Stephen Hawkings. O tema, ali, é a separação e o desgaste inevitável das relações humanas – mesmo quando se apresentam como conto de fadas. Boyhood é a consagração da vida ordinária, sem eufemismos, sem certezas, sem cerimônias ou esforços premiados: seu protagonista é um sujeito que se desilude à medida que cresce e se torna um poço de dúvidas entre exercícios correntes de aceitação. Selma é a história de uma chaga não cicatrizada e ainda atual: a escravidão americana. O Grande Hotel Budapeste é o posfácio de uma ordem desmoronada no entreguerras. E Whiplash, por fim, é a caricatura de um período nefasto: levamos tão a sério a ideia de superação que nos transformamos em sujeitos boçais, arrogantes e incapazes de distinguir um abraço de uma chinelada. O sucesso requer esforço, e o esforço é sempre compensador, dizem os gurus da autoajuda. É esse espirito que o cinema contemporâneo parece tentar rebater ao sinalizar: temos o direito de fracassar.

Em uma noite supostamente dedicada ao glamour e à perfeição dos corpos, cortes, tecidos e sorrisos, a reação ao conto de fadas – e às angústias consequentes de sua busca ou frustração – era verbalizada cada vez que alguém subia ao palco e, em vez de exaltar uma suposta conquista, dedicava o prêmio a quem ainda hoje estoura as testas nos vidros antichoque da normatividade: mulheres assediadas e desvalorizadas em detrimento dos homens, jovens que não suportaram a bucha e interromperam a vida precocemente, negros encarcerados e humilhados por uma simetria inexistente de direitos. “Me pergunte mais”, diziam algumas das atrizes em reação às velhas perguntas sobre os mesmos modelitos. Era uma forma de lembrar que havia um ser humano, imperfeito e indisposto à perfeição, por trás de tantas regras e máscara para atingir a glória. O voo do homem-pássaro começava a despencar.

Nas falas, temáticas e protestos cuspidos na noite das alegrias superficiais, era possível ouvir o personagem errático de Fernando Pessoa pedindo passagem. “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

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