Cultura

Obras-primas da animação russa exibidas no Brasil

Produções soviéticas e contemporâneas chegam ao Rio de Janeiro dia 17 em uma mostra na Caixa Cultural, a primeira na América Latina

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Ladislas Starevitch (1882-1965) não apenas dirigiu um museu de história natural como deu vida aos insetos em extraordinários curtas de animação.

A partir de suas descobertas, à moda do que ocorreria com Sergei Eisenstein, a Rússia jamais inibiria uma vocação cinematográfica. E a animação seria transformada em um dos mais perfeitos veículos para a tradução da alma do país.

Entre 1936 e 1991, 250 filmes foram produzidos anualmente pela Soyuzmultfilm, o estúdio estatal que contava com uma escola para a formação de animadores. O financiamento estatal ruiu com a perestroika, mas a animação voltou a crescer em anos recentes.

As produções soviéticas e contemporâneas chegam ao Rio de Janeiro dia 17 em uma mostra na Caixa Cultural, a primeira na América Latina. Os filmes escolhidos pelos curadores Maria Vragova e Luiz Gustavo Carvalho excedem em beleza e são autorais.

Aleksandr Petrov pinta com os dedos mergulhados em tinta o filme Meu Amor (2006), como se Renoir ilustrasse Turguêniev. Vencedor do Oscar em 2000, por sua adaptação de O Velho e o Mar, Petrov herdou as revoluções de Yuri Norstein, para quem em uma história caberiam todas as simbologias.

As iluminações cercam o pequeno lobo no telúrico e poético O conto dos contos (1979). Muito humor há na obra de Roman Katchanov, que em 1969 inovou na animação de bonecos. Em seu Tcheburaska está a origem do mascote da olimpíada de 1980. O estranho animal sai de uma caixa de laranjas, e nem o zoológico sabe classificá-lo. É um filme sobre a marginalidade, embora Katchanov jamais tenha sofrido com a censura.

A seguir, a entrevista concedida a CartaCapital pelos curadores. 

CartaCapital: Como a iniciativa desta mostra teve início? Por que começar pelo Brasil? Houve outras tentativas antes de mostrar esta vasta produção aos latino-americanos?

Maria Vragova: O Brasil e a Rússia são dois países de proporções gigantescas. Nos últimos anos, as relações entre o Brasil e a Rússia cresceram muito em todas as esferas. Mas há algo que une também estes dois países: um excelente cenário de animação. Não é por acaso que, na última edição do Oscar americano, tanto o Brasil quanto a Rússia tiveram um filme de animação indicados ao prêmio.

Por isso, decidimos conscientemente começar a mostra de animação pelo Brasil. Recentemente, apresentamos uma mostra de cinema contemporâneo russo, com uma programação que começava com filmes da Perestroika e vinha até os dias atuais. A mostra foi apresentada no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em São Paulo. O sucesso em todas as capitais foi surpreendente. Assim, gostaríamos de apresentar a animação russa, praticamente desconhecida no Brasil, para o público brasileiro. 

Mostra de Animação RussaCaixa Cultural Rio de Janeiro. Entre 17 e 29 de maio

CC: A produção de animação russa, desde os tempos soviéticos, recebe atenção especial, estímulo governamental? De que ordem? Aproxima-se do valor destinado à produção cinematográfica? Houve estúdios estatais e escolas especialmente dedicados à formação de desenhistas e animadores? E onde os filmes eram exibidos? Em circuito de festivais ou comerciais? A televisão russa mostrava ou ainda mostra estas produções?

Luiz Gustavo Carvalho: A animação russa atraiu a atenção do governo desde a época czarista. Ladislas Starevitch, um dos pioneiros da animação mundial, foi condecorado pelo czar russo. A vanguarda russa influenciou os filmes de animação dos anos 1920, fazendo da animação russa uma das primeiras escolas de animação autoral do mundo, tradição que persiste até os dias atuais. 

O governo soviético também viu na animação uma grande possibilidade para a divulgação da revolução socialista nos anos 1920 e 1930. Assim, em 1936, foi criado o estúdio Soyuzmultfilm, um dos maiores de animação do mundo.  Ele tinha uma escola própria para a formação de diretores e animadores e, junto com a Escola Superior de Cenaristas e Diretores de Moscou, foi responsável pela formação de grandes animadores, tais como Roman Katchanov, Yuri Norstein, Alexander Petrov e Muitos outros.

Até 1991, este estúdio, que chegou a produzir cerca de 250 filmes ao ano, era financiado pelo governo. Após a queda da União Soviética, o estúdio foi privatizado e a animação russa passou por uma grande crise, assim como toda a indústria cinematográfica. 

Atualmente, diversos estúdios independentes retomaram a produção de desenhos de altíssimo nível e nomes como Alexander Petrov, Konstantin Bronzit e Svetlana Filippova são reconhecidos mundialmente.

Diversos desenhos animados contemplados na programação da mostra ganharam prêmios em festivais internacionais, como Festival de Oberhausen (Alemanha), o Festival de Annecy (França) e até mesmo o Festival de Cinema de Cannes, como no caso do filme A ilha, de   Fiodor Khitruk.

Um filme atemporal, de uma poesia singular, que permanece muito atual nos dias de hoje. A animação dos anos 1960-1980 continua ainda muito conhecida na Rússia e é transmitida até hoje pela televisão e integra a programação de grandes festivais. 

CC: Uma obra como a de Norstein parece extrapolar a animação convencional, com forte carga simbólica. A história da raposa e do coelho podem até ser compreendidas dentro de um esforço de época de exaltar o trabalho contra a exploração. Mas filmes como O Conto dos Contos não parecem interessados em uma interpretação fechada, eles testam todas as possibilidades de significação… Norstein sofreu qualquer espécie de veto a estas produções? Ele pintava quadro a quadro? Trabalhava em equipes grandes?

LGC: A obra de Norstein tem como principal tema o universo interior do ser humano. As nossas angústias e aflições. Seja através de um pequeno ouriço, de uma garça, uma cegonha ou do lobinho do filme O conto dos contos, ele retrata sempre, com grande profundidade, sentimentos humanos.

De alguma maneira, o seu universo pode ser comparado àquele do seu colega conterrâneo Andrei Tarkovsky. Norstein tem uma completa aversão ao uso da computação na animação e pintava quadro a quadro em uma rica, extensa e duradoura colaboração com a sua esposa, Francesca Yarbusova, com quem trabalha até hoje. 

A batalha de Kerzhenets, realizado em colaboração com Ivan Ivanov-Vano, A garça e a cegonha, que nos remete aos contos tchekhovianos, o Ouriço no nevoeiro… Todos esses filmes são considerados obras-primas da animação. O Conto dos Contos foi considerado o melhor filme de todas as épocas de todos os povos.  

CC: Aleksandr Petrov parece ser o mais obstinado em desenvolver uma técnica própria, espelhada na pintura. Como o sucesso de O Velho e o Mar, vencedor do Oscar, mudou sua carreira? Meu Amor é uma obra-prima de artesania, um show de movimentação, um concerto telúrico, mas ele parece fugir à interpretação aberta. É o mais importante autor hoje na Rússia?

LGC: A obra de Alexander Petrov é realmente inconfundível. Basta um quadro para reconhecermos os seus desenhos. Petrov, que também continua realizando cada desenho à mão, desenvolveu um estilo único, através da pintura a óleo com os dedos.

O resultado é realmente próximo à pintura e podemos reconhecer a influência dos grandes pintores russos, tais como Ayvazovsky, Kundzhin ou Vazsnetsov na sua obra. Vencedor do Oscar, para o qual foi indicado várias vezes, ele trabalha em um estúdio, na cidade de Yarislavl. 

Mas cabe ressaltar que a animação autoral, com a utilização de diferentes técnicas, é muito presente na Rússia. Também a diretora Svetlana Filippova, que estará presente no Rio de Janeiro durante a mostra de animação russa, tem um trabalho autoral riquíssimo, para o qual ela utiliza borra de café.

Discípula do revolucionário Fiodor Khitruk e de Yuri Norstein, ela mescla arquivos documentais nas suas animações. O seu filme Brutus, que fala do Holocausto, tendo um cão como protagonista, é um dos filmes mais marcantes da animação contemporânea.

CC: O humor de Roman Kachanov em Tcheburashka parece ter sido copiado no Ocidente sob o aspecto artístico, de animação dos objetos. Ele parece desinteressado, ao contrário dos outros presentes na mostra, em construir grandes paineis sobre a terra, as tempestades, os movimentos das águas e das folhas… É muito curiosa sua fábula em torno de um animal admitido ao convívio dos mais humildes, mas impossível de classificar pelo zoológico. O filme parece evocar a marginalidade social. Foi um filme bem-sucedido à época, pôde passar sem problemas pela censura?

MV: Roman Katchanov foi um dos principais artistas a trabalhar a animação de objetos (animação de bonecos) na União Soviética. Havia um departamento específico para a animação de objetos dentro do estúdio Soyuzmultfilm. Katchanov tinha uma grande atração pela convivência entre animais, criaturas e seres humanos no mesmo espaço.

Assim, nos seus filmes uma menina cuida de uma luva como se fosse um cachorro, o crocodilo Guena “trabalha” como crocodilo em um jardim zoológico e Tcheburashka, apesar de ainda não ter sido identificado pela ciência, sonha em tornar-se “pioneiro”. Os desenhos não sofreram nenhum tipo de censura.

Ao contrário, Tcheburashka e Crocodilo Guena acompanharam, desde então, a infância de cada criança russa. A sua popularidade na Antiga União Soviética era tão grande que Tcheburashka foi escolhido como mascote da Seleção Olímpica da União Soviética e a canção de aniversário cantada pelo crocodilo é até hoje a canção que os russos cantam nos aniversários.

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