Cultura

O universo em comunidade

Os personagens do Harlem fotografados por Dawoud Bey retratam a luta para estabelecer uma cultura negra urbana

Retrato do fotógrafo Dawoud Bey. Foto: Jason Smikle
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Por Francisco Quinteiro Pires, de Nova York

 

As ruas do Harlem traçaram o destino de Dawoud Bey. Foi nessa região nova-iorquina que os seus pais se conheceram. Na meca cultural afro-americana, Bey, adolescente, começou a carreira de fotógrafo, sendo o primeiro da família a exercer um trabalho com aura artística. Aos 25 anos, em 1979, exibiu pela primeira vez suas imagens no Studio Museum in Harlem. “A arte podia desempenhar um papel poderoso no universo de uma comunidade”, acreditava.

Após décadas fora de circulação, Harlem, U.S.A., série de 25 retratos feitos entre 1975 e 1979, foi incorporada ao acervo permanente do Art Institute of Chicago, o segundo maior museu dos Estados Unidos. À época, Bey tinha “intenções retóricas”. “Queria fazer imagens positivas dos moradores que contrastassem com as representações mais patológicas dos meios de comunicação.” Esse projeto era a sua resposta a Harlem on My Mind: Cultural Capital of Black America, exposição do Metropolitan Museum of Art realizada em 1969.

Harlem on My Mind propôs “documentar a luta para estabelecer uma cultura negra urbana em meio à sociedade industrializada do século XX”. A exposição recebeu a desaprovação dos afro-americanos e da crítica. Protestos foram realizados e pinturas, riscadas. A curadoria teria assumido uma “subjetividade branca”, ao evitar a participação de artistas negros no planejamento da mostra. Passada a polêmica, o Harlem permaneceu na mente das pessoas como uma terra desolada. Essa perspectiva fora exposta um ano antes a um público amplo. Gordon Parks (1912-2006) retratou para a revista Life a vida da família Fontenelle, moradora da região. Imagens originais e inéditas desse ensaio fotográfico de 1967 vão ser exibidas no Studio Museum em novembro, mês do centenário de nascimento de Parks.

Enquanto mostrava a imagem positiva de uma região desamparada, Bey passou a questionar o ato de fotografar. “O melhor trabalho tende a resultar não da imposição de uma ideia a certas circunstâncias, mas da capacidade de ser sincero com uma experiência.” Ao carregar pelas largas avenidas do Harlem uma Nikkormat FTn, câmera leve com filme 35mm, ele teve cada vez mais certeza da necessidade de “banir uma noção predatória da fotografia”. A relação entre fotógrafo e fotografado deve ser “sempre e mais consensual”.

Bey diz ter mostrado a dignidade dos seus modelos, escondida por estereótipos. Confessa ser consciente o processo de criação de empatia com um barbeiro (Harlem, NY, 1975), um senhor com chapéu-coco (A Man in a Bowler Hat, 1976), uma mulher encostada em uma parede (A Woman Waiting in the Doorway, 1976), um cozinheiro com a mão sobre o balcão (Mr. Moore’s Bar-B-Que, 1979). “Os retratos revelam tanto o retratista quanto o retratado”, afirma Bey. “Richard Avedon disse certa vez: ‘Às vezes, tenho a impressão de que todas as minhas fotos são a minha imagem. Minha preocupação é com a essência humana. O que entendo por isso pode ser simplesmente a minha essência’. Eu concordo.”

Retratos, diz Bey, “nos permitem criar uma relação íntima com um estranho”. Ele segue uma tradição consolidada por Lewis Hine (1874-1940). Crente no poder educativo da fotografia, Hine apontou, em 1909, para “uma estética realista capaz de incorporar os rostos açoitados pelo tempo e as mãos desgastadas dos trabalhadores”. As suas imagens de crianças trabalhando em fábricas ajudaram a mudar as leis laborais dos EUA. Hine criou uma ponte entre espectadores e os desamparados, como na foto Italian Family Looking for Lost Baggage, Ellis Island, New York (1905), ao contrário de Jacob Riis (1849-1914). Nos livros How The Other Half Lives (1890) e The Battle with the Slum (1902), Riis retratou os imigrantes que habitavam os cortiços de Lower East Side, em Manhattan. Apesar do pioneirismo das suas fotos, reveladoras da condição aviltante dos estrangeiros, ele os apresentou como um universo à parte. Bey vê resultado parecido no trabalho de Aaron Siskind (1903-1991), autor do projeto Harlem Document. Enquanto era integrante da New York’s Photo League, Siskind fez as imagens daquela empreitada sob anonimato, genéricas a ponto de parecerem caricaturais.

Desde os anos 1920, o Harlem se tornou um universo privilegiado para fotógrafos da tradição realista, propensa à denúncia social. Bey sente afinidade pelos retratos de James VanDerZee (1886-1983), um dos participantes de Harlem on My Mind. Feitas em estúdio, as imagens de VanDerZee inspiram otimismo ao captar a efervescência cultural da região. Nos anos 1970, com o Harlem assolado pela violência e pela pobreza, o trabalho de VanDerZee adquiriu um tom nostálgico.

De acordo com Bey, as obras de Walker Evans (1903-1975) e Roy DeCarava (1919-2009) têm ideias similares às de Harlem, U.S.A. “Elas me ofereceram uma noção sobre como alguém desenvolve a sensibilidade sobre o ato de fotografar e, depois, envolve essa percepção em torno de um tema particular.” Em Elogiemos os Homens Ilustres (Companhia das Letras), publicado em 1941, Evans e o jornalista James Agee descreveram as agruras do cotidiano de famílias de meeiros no Alabama. Em The Sweet Flypaper of Life (1955), DeCarava e o poeta Langston Hughes criaram uma história ficcional para mostrar o lado positivo de ser morador do Harlem. A perspectiva de Bey é uma fusão das duas abordagens. Para ele, mesmo a vida dura tem o seu quinhão de beleza, a ser garimpado por um olhar humanizador.

Essas parcerias influenciaram Bey a adotar a palavra no projeto Class Pictures (2007). Ele se preocupou com “a quantidade de informações excluída de cada imagem”. Entre os 1990 e 2000, usando filme colorido, ele fotografou adolescentes, a quem pediu para se descreverem em breves textos. Construiu, com isso, “uma representação da adolescência diferente daquela que trata os jovens como socialmente problemáticos ou motores do consumismo”.

Professor do Columbia College Chicago, Bey atualmente participa da montagem de uma exposição do Birmingham Museum of Art, no Alabama. Em setembro de 1963, uma bomba estourou na Sixteenth Street Baptist Church e matou quatro meninas negras.

Dois jovens foram assassinados durante protestos no mesmo dia da explosão motivada por racismo. A mostra inspirada por esse evento vai ser inaugurada em 2013. Símbolo da luta pelos direitos civis, a igreja de Birmingham continua em funcionamento. Bey reserva ao passado o mesmo respeito dispensado aos seus retratados. “Cada lugar representa ao mesmo tempo o que foi e o que é. A combinação de ambos constitui a experiência e o significado profundo desse espaço.”

 

Por Francisco Quinteiro Pires, de Nova York

 

As ruas do Harlem traçaram o destino de Dawoud Bey. Foi nessa região nova-iorquina que os seus pais se conheceram. Na meca cultural afro-americana, Bey, adolescente, começou a carreira de fotógrafo, sendo o primeiro da família a exercer um trabalho com aura artística. Aos 25 anos, em 1979, exibiu pela primeira vez suas imagens no Studio Museum in Harlem. “A arte podia desempenhar um papel poderoso no universo de uma comunidade”, acreditava.

Após décadas fora de circulação, Harlem, U.S.A., série de 25 retratos feitos entre 1975 e 1979, foi incorporada ao acervo permanente do Art Institute of Chicago, o segundo maior museu dos Estados Unidos. À época, Bey tinha “intenções retóricas”. “Queria fazer imagens positivas dos moradores que contrastassem com as representações mais patológicas dos meios de comunicação.” Esse projeto era a sua resposta a Harlem on My Mind: Cultural Capital of Black America, exposição do Metropolitan Museum of Art realizada em 1969.

Harlem on My Mind propôs “documentar a luta para estabelecer uma cultura negra urbana em meio à sociedade industrializada do século XX”. A exposição recebeu a desaprovação dos afro-americanos e da crítica. Protestos foram realizados e pinturas, riscadas. A curadoria teria assumido uma “subjetividade branca”, ao evitar a participação de artistas negros no planejamento da mostra. Passada a polêmica, o Harlem permaneceu na mente das pessoas como uma terra desolada. Essa perspectiva fora exposta um ano antes a um público amplo. Gordon Parks (1912-2006) retratou para a revista Life a vida da família Fontenelle, moradora da região. Imagens originais e inéditas desse ensaio fotográfico de 1967 vão ser exibidas no Studio Museum em novembro, mês do centenário de nascimento de Parks.

Enquanto mostrava a imagem positiva de uma região desamparada, Bey passou a questionar o ato de fotografar. “O melhor trabalho tende a resultar não da imposição de uma ideia a certas circunstâncias, mas da capacidade de ser sincero com uma experiência.” Ao carregar pelas largas avenidas do Harlem uma Nikkormat FTn, câmera leve com filme 35mm, ele teve cada vez mais certeza da necessidade de “banir uma noção predatória da fotografia”. A relação entre fotógrafo e fotografado deve ser “sempre e mais consensual”.

Bey diz ter mostrado a dignidade dos seus modelos, escondida por estereótipos. Confessa ser consciente o processo de criação de empatia com um barbeiro (Harlem, NY, 1975), um senhor com chapéu-coco (A Man in a Bowler Hat, 1976), uma mulher encostada em uma parede (A Woman Waiting in the Doorway, 1976), um cozinheiro com a mão sobre o balcão (Mr. Moore’s Bar-B-Que, 1979). “Os retratos revelam tanto o retratista quanto o retratado”, afirma Bey. “Richard Avedon disse certa vez: ‘Às vezes, tenho a impressão de que todas as minhas fotos são a minha imagem. Minha preocupação é com a essência humana. O que entendo por isso pode ser simplesmente a minha essência’. Eu concordo.”

Retratos, diz Bey, “nos permitem criar uma relação íntima com um estranho”. Ele segue uma tradição consolidada por Lewis Hine (1874-1940). Crente no poder educativo da fotografia, Hine apontou, em 1909, para “uma estética realista capaz de incorporar os rostos açoitados pelo tempo e as mãos desgastadas dos trabalhadores”. As suas imagens de crianças trabalhando em fábricas ajudaram a mudar as leis laborais dos EUA. Hine criou uma ponte entre espectadores e os desamparados, como na foto Italian Family Looking for Lost Baggage, Ellis Island, New York (1905), ao contrário de Jacob Riis (1849-1914). Nos livros How The Other Half Lives (1890) e The Battle with the Slum (1902), Riis retratou os imigrantes que habitavam os cortiços de Lower East Side, em Manhattan. Apesar do pioneirismo das suas fotos, reveladoras da condição aviltante dos estrangeiros, ele os apresentou como um universo à parte. Bey vê resultado parecido no trabalho de Aaron Siskind (1903-1991), autor do projeto Harlem Document. Enquanto era integrante da New York’s Photo League, Siskind fez as imagens daquela empreitada sob anonimato, genéricas a ponto de parecerem caricaturais.

Desde os anos 1920, o Harlem se tornou um universo privilegiado para fotógrafos da tradição realista, propensa à denúncia social. Bey sente afinidade pelos retratos de James VanDerZee (1886-1983), um dos participantes de Harlem on My Mind. Feitas em estúdio, as imagens de VanDerZee inspiram otimismo ao captar a efervescência cultural da região. Nos anos 1970, com o Harlem assolado pela violência e pela pobreza, o trabalho de VanDerZee adquiriu um tom nostálgico.

De acordo com Bey, as obras de Walker Evans (1903-1975) e Roy DeCarava (1919-2009) têm ideias similares às de Harlem, U.S.A. “Elas me ofereceram uma noção sobre como alguém desenvolve a sensibilidade sobre o ato de fotografar e, depois, envolve essa percepção em torno de um tema particular.” Em Elogiemos os Homens Ilustres (Companhia das Letras), publicado em 1941, Evans e o jornalista James Agee descreveram as agruras do cotidiano de famílias de meeiros no Alabama. Em The Sweet Flypaper of Life (1955), DeCarava e o poeta Langston Hughes criaram uma história ficcional para mostrar o lado positivo de ser morador do Harlem. A perspectiva de Bey é uma fusão das duas abordagens. Para ele, mesmo a vida dura tem o seu quinhão de beleza, a ser garimpado por um olhar humanizador.

Essas parcerias influenciaram Bey a adotar a palavra no projeto Class Pictures (2007). Ele se preocupou com “a quantidade de informações excluída de cada imagem”. Entre os 1990 e 2000, usando filme colorido, ele fotografou adolescentes, a quem pediu para se descreverem em breves textos. Construiu, com isso, “uma representação da adolescência diferente daquela que trata os jovens como socialmente problemáticos ou motores do consumismo”.

Professor do Columbia College Chicago, Bey atualmente participa da montagem de uma exposição do Birmingham Museum of Art, no Alabama. Em setembro de 1963, uma bomba estourou na Sixteenth Street Baptist Church e matou quatro meninas negras.

Dois jovens foram assassinados durante protestos no mesmo dia da explosão motivada por racismo. A mostra inspirada por esse evento vai ser inaugurada em 2013. Símbolo da luta pelos direitos civis, a igreja de Birmingham continua em funcionamento. Bey reserva ao passado o mesmo respeito dispensado aos seus retratados. “Cada lugar representa ao mesmo tempo o que foi e o que é. A combinação de ambos constitui a experiência e o significado profundo desse espaço.”

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