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O testamento de Philip Roth

Em um conjunto de textos de não ficção escritos ao longo de 50 anos, o autor, morto em 2018, reflete sobre as intricadas relações entre o real e o inventado

O testamento de Philip Roth
O testamento de Philip Roth
Um dos grandes romancistas norte-americanos da segunda metade do século XX , Roth escreveu 31 obras - Imagem:Companhia das Letras
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“Escrever romances é um jogo de faz de conta”, esclarece Philip Roth (1933-2018) em Errata, presente em Por Que Escrever – Conversas e Ensaios Sobre Literatura. O texto é endereçado à Wikipédia e às certezas ali postas sobre a identidade real dos personagens de A Marca Humana (2000), Operação Shylock (1993) e Pastoral Americana (1997).

Errata pode não ser o melhor nem o mais significativo texto da coletânea agora lançada no Brasil, mas congrega uma inquietação que marcou profundamente o autor: a intricada relação entre realidade e ficção e os impactos disso sobre a sua reputação. Não à toa, logo nas primeiras páginas de Por Que Escrever?, ele cita o conto Defender of the Faith, publicado na New Yorker, em 2014, e considerado uma afronta aos judeus.

Roth, ganhador do Pulitzer em 1998 e do Man Booker International Prize em 2011, escreveu 31 livros, sendo 27 de ficção. Segundo ele, a não ficção serviu, sobretudo, para responder à provocação de ser antissemita – embora judeu –, atender pedidos de entrevistas, agradecer prêmios ou chorar a morte de algum amigo.

Divididos em três partes, esses escritos não ficcionais, produzidos entre 1960 e 2013, e publicados nos Estados Unidos em 2017, um ano antes da morte de Roth, aos 85, podem ser entendidos como seu testamento literário.

POR QUE ESCREVER? Philip Roth. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras (568 págs., 89,90 reais.)

“Aqui estou, tendo saído do biombo de disfarces, invenções e artifícios do romance (…), desprovido de todas aquelas máscaras que proporcionaram a grande liberdade de imaginação da qual fui capaz de desfrutar como escritor de ficção”, escreve, no prefácio, ecoando Mickey Sabbath, o protagonista de O Teatro de Sabbath (1995).

Um tema que se revela incontornável é a identidade judaica. Sua reiteração torna-se, em alguma medida, excessiva. Mas o todo comporta um texto imenso: Imaginando Judeus. Outro eixo importante é o dos diálogos e reflexões sobre literatura, que atravessa Kafka, Salinger, Bernard, Malamud, Kundera e Mailer. Os encontros com Primo Levi, pouco antes de seu suicídio, e com o espirituoso Isaac Bashevis Singer são brilhantes.

No texto que abre a terceira parte do livro, chamada Explicações, Roth conta que, aos 23 anos, queria ser um escritor capaz de deslumbrar o mundo e construir com palavras algo semelhante à vida.

Esse inventar a vida, descobriria ao longo de 60 anos de carreira, é tão prazeroso quanto duro, para não dizer perigoso. “Às vezes, me parece que só o romancista e os doidos vivem desse jeito, o que, afinal de contas, não passa de uma vida – tornando o transparente opaco, o opaco transparente”, escreve, nessa dupla biografia onde vida e obra aparecem refletidas uma na outra. • – Por Ana Paula Sousa

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O testamento de Philip Roth”

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