Cultura
O terreno onde Trump floresceu
Em um misto de reportagem, testemunho e ensaio, Jamil Chade narra a corrosão da democracia nos EUA


Tomara Que Você Seja Deportado – Uma Viagem Pela Distopia Americana é um título doloroso e íntimo. Foi esta a frase que o filho do autor, o jornalista Jamil Chade, ouviu no pátio de uma escola em Nova York, no auge do endurecimento das políticas migratórias de Donald Trump. A cena expõe o alcance do ódio disseminado pela retórica trumpista.
Walter Salles observa, no prefácio, que o cinema e a literatura vinham antecipando essa sensação de colapso. Ele cita, como exemplos, o filme O Declínio do Império Americano (1987), de Denys Arcand, e o livro Como as Democracias Morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, destacando que a narrativa de Chade confere materialidade a esses retratos.
Ao longo de dois anos, o autor visitou comícios de Trump, caminhou entre eleitores e testemunhou a disseminação de fake news, os ataques contra a imprensa e a transformação do discurso público em espetáculo de ódio.
Com números, Chade tenta explicar a simpatia por Trump. Segundo o Pew Research Center, 61% dos norte-americanos eram considerados classe média em 1971. Em 2023, o porcentual caiu para 51%. No mesmo período, os mais pobres (renda anual inferior a 35 mil dólares) aumentaram de 27% para 30%, enquanto os mais ricos saltaram de 11% para 19%.
Tomara Que Você Seja Deportado: Uma Viagem Pela Distopia Americana. Jamil Chade. Editora Nós (256 págs., 79 reais)
Ou seja, a sociedade tornou-se mais desigual, com parte importante da população sentindo-se esquecida e desprotegida e o “sonho americano” tornando-se apenas uma ilusão. Em 2024, outro levantamento do Pew indicou que 41% dos entrevistados não acreditavam que esse sonho pudesse ser vivido.
Foi nesse terreno de frustrações que floresceu o trumpismo. Chade, numa mistura de reportagem, testemunho e ensaio político, mostra como Trump se tornou a expressão de uma masculinidade em crise. Sua volta à Casa Branca, este ano, ganhou aura de redenção: um homem humilhado que retorna vitorioso, exemplo para uma base que também se sente derrotada.
O livro descreve o perigo dessa narrativa ultranacionalista e xenófoba, em que Trump é erigido como o messias destinado a salvar a civilização. Chade, ao mesmo tempo, usa a experiência pessoal como lente para sua análise. Além do medo do filho, ele relata o clima nos abrigos de deportados e descreve famílias que optam pela “autodeportação” diante do terror instalado.
Da combinação entre o íntimo e o estrutural emerge a força da obra. Chade mostra que as democracias podem ruir por dentro. E alerta: o que protege as instituições não são suas paredes, mas as pessoas que as habitam. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O terreno onde Trump floresceu’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.