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O tempo desconjuntado

A protagonista da série ‘Sobre o Cálculo do Volume’, formada por sete livros, vive, todos os dias, o mesmo dia

O tempo desconjuntado
O tempo desconjuntado
Ecos. Embora a premissa seja a mesma do filme O Feitiço do Tempo, a grande inspiração da autora dinamarquesa parece ter sido Hamlet – Imagem: Sarah Hartvingsen Juncker
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Em Hamlet, o protagonista maldiz o destino que o submete a consertar o tempo, àquela altura desconjuntado, no reino podre da Dinamarca. O final da peça, todos sabem, é trágico. O personagem shakespeariano parece ter influenciado a escritora dinamarquesa Solvej Balle, agora com 62 anos, a escrever uma série de sete romances cuja protagonista Tara Selter está, ela também, incumbida de consertar o tempo. Os dois primeiros livros da septologia, intitulada Sobre o Cálculo do Volume, foram agora lançados no Brasil.

A premissa é a seguinte: Tara está presa no dia 18 de novembro. Todo dia ela acorda e, em vez da progressão comum, o fatídico se repete. Os jornais datam sempre 18 de novembro, os calendários marcam 18 de novembro, qualquer pessoa interpelada quanto a que dia é responde 18 de novembro.

Aquilo a que nós, leitores, temos acesso são as entradas de diário que Tara passa a manter a partir de determinado momento. Pegamos a história pelo começo, quando ela percebeu a repetição, mas anotada somente a partir do dia #121. É, um pouco, o artifício literário do in media res.

Os cinéfilos contestarão a originalidade da premissa. Trata-se, afinal de contas, exatamente da mesma utilizada em Feitiço do Tempo (1993), em que Bill ­Murray interpreta Phil, um repórter mau-caráter que revive o 2 de fevereiro por quase uma eternidade.

Sobre o Cálculo do Volume – 1. Solvej Balle. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Editora Todavia (152 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Assim como nestes volumes iniciais de Sobre o Cálculo do Volume, não se sabe por que ocorreu a falha temporal. Phil, no entanto, diferentemente dos protagonistas da peça de Shakespeare e dos livros de Solvej Balle, não tenta consertá-la. Ele tenta, ao contrário, aproveitar-se dela, para conquistar mulheres, por exemplo; ou depois anulá-la, suicidando-se de todas as formas imagináveis.

Mas nada disso funciona, e a falha se resolve mais ou menos sozinha, com a sutil sugestão moral de que a melhora de caráter é que recuperaria a ordem.

Como Tara resolve relatar os dias passados até o ponto em que começa a escrever, o primeiro volume gira em torno da ideia de memória. Além de dezenas de frases formadas com “lembro-me de” e “recordo que” – evidência textual de que é mesmo a memória que está em jogo –, desponta uma questão filosófica.

Tara tem a percepção de que o dia específico se repete, enquanto todas as outras pessoas acordam como se o fossem vivê-lo pela primeira vez. Enquanto ela lembra que ontem um pedaço de comida caiu no chão a dado momento e hoje cai de novo, no mesmo instante, ou que ontem choveu a tal hora e hoje chove à mesma hora etc., as outras pessoas, meramente, seguem com o cotidiano, tendo-o como novidade.

A autora, ao ensejar essa discussão sobre a memória, chama atenção também para como, se não nos atentamos aos detalhes, não percebemos a mesmice, a monotonia, a invariabilidade de uma vida que se repete e se repete.

Ainda no primeiro volume, Tara ganha ares de detetive. Junto a Thomas, seu marido, que toda manhã acredita que a mulher passa mesmo por essa anomalia, ela tenta desvendar o mistério que a mantém em desarmonia.

Sobre o Cálculo do Volume – 2. Solvej Balle. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Editora Todavia (168 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

“Contei toda a história para ele mais uma vez. Eu disse que o tempo havia se estilhaçado, que estávamos investigando o problema, que tínhamos examinado os detalhes, (…) que ele precisava me ajudar, que ninguém havia morrido e ninguém havia se machucado, apenas o tempo, que era cheio de mistérios, de irregularidades, de uma mecânica enganosa, uma similaridade velada com inúmeras coisas desconhecidas.” Os dois testam alguns procedimentos para burlar o sistema enguiçado, como, por exemplo, não dormir e ver o que acontece.

Não adianta. Tara decide, então, locomover-se no espaço. Eis o segundo volume.

A protagonista viaja da França à Bélgica, onde estão seus pais, vai à Escandinávia, terra da própria autora, e ainda desce à Itália, entre outras regiões na Europa, em busca de vestígios das estações do ano. Ela aproveita a neve que já cai mais ao Norte e força um Natal setentrional, como se dezembro tivesse chegado; ao Sul, as flores e o sol lembram-na de que a primavera desabrocha.

A escritora Solvej Balle deseja chamar a atenção para a invariabilidade e a mesmice da vida

A autora poderia ter posto Tara em qualquer lugar do mundo, já que questões sociais, geopolíticas e contextuais praticamente não aparecem na narrativa. Aliás, nem sequer o ano em que se passa a narrativa nos é informado. Só conseguimos enquadrar o período porque são mencionados celulares.

A indeterminação temporal casa bem com a proposta do livro, já a alienação espacial indica o desinteresse da autora em representar e repensar acontecimentos relevantes para passado, presente e futuro europeus e mundiais.

Obras literárias que incorporam problemas para os quais a lógica corrente não tem respostas consensuais, como vida após a morte, vida extraterrestre, universo paralelo e, neste caso, descompasso do tempo, estão fadadas a prometer explicações que, no fim, não poderão entregar aos leitores. Nem em um, em dois, nem mesmo em sete volumes.

Hamlet conserta, ou não, algo que não é bem o tempo; Phil conta com o deus ex machina hollywoodiano; já Tara, à falta dos próximos cinco volumes, ainda não sabemos aonde chegará. A boa notícia é que a literatura não precisa explicar nada. E, no fim, mais vale acompanhar a heroína na briga interminável contra o que a faz diferente do que descobrir como foi que ela fez para solucionar um mistério sem solução. •

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O tempo desconjuntado’

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