Cultura

cadastre-se e leia

O talentoso Ripley francês

Édouard Louis, nascido pobre e tornado um autor best seller, encanta e incomoda um país dividido

Humilhação e ambição. Em Mudar: Método, lançado agora no Brasil, o escritor trabalha em uma chave muito próxima àquela adotada por Jean Genet em Diário de um Ladrão – Imagem: Arnaud Delrue
Apoie Siga-nos no

Numa noite congelante de janeiro, o escritor best seller Édouard Louis está tomando um chocolate quente com rum, sentado exatamente onde quis estar na maior parte de sua vida: em uma mesa discreta no Le Select, um dos mais famosos cafés literários na margem esquerda do Sena, em Paris.

“Aqui sinto-me em casa”, diz, quando demonstro certa surpresa pelo local escolhido, pois esperava que o jovem iconoclasta de 32 anos preferisse os bares mais elegantes dos bairros da Bastilha ou do Marais. “Sei que é um café antiquado”, continua, “mas por isso gosto daqui. É como um monumento à literatura francesa. Todo mundo já esteve aqui, e escritores, editores e políticos ainda vêm, então ele também faz parte do presente. É um lugar onde posso encontrar amigos facilmente e me conectar com o mundo.”

Há ainda outros dois motivos: fica perto de sua casa e há tantos clientes famosos que é improvável que ele seja notado ou incomodado por fãs.

Louis é hoje uma figura pública na França, facilmente reconhecível por suas aparições nos meios de comunicação e em publicações como Les ­Inrockuptibles, a bíblia dos modernos franceses. Há pouco tempo, ele apareceu na capa como editor convidado da revista, confirmando sua posição de avatar cultural que vive nos meios mais badalados de Paris.

“Existem muitos grupos marginalizados, mas os desertores de classe são uma espécie de minoria oculta que vive um duplo exílio”

Esse foi mais um momento de triunfo para um jovem escritor que explodiu no cenário literário há dez anos com O Fim de Eddy, baseado em suas origens na classe trabalhadora do norte da França – uma autoficção abrasadora e às vezes brutal no estilo de Annie ­Ernaux ou Karl Ove Knausgaard.

Louis também fala muito sobre política e dá voz a uma geração francesa mais jovem que se sente desconectada da polarização tradicional entre direita e esquerda. No passado, declarou apoio ao político de extrema-esquerda ­Jean-Luc Mélenchon, embora diga não ser garoto-propaganda de ninguém e, com frequência, mude de ideia.

Enquanto espero por ele, meu vizinho de mesa, notando meu exemplar do romance Mudar: Método (Todavia, 240 págs., 74,90 reais), de Louis, diz. “Esse livro é excelente!” Era Sébastien-Yves Laurent, professor de História na Universidade de Bordeaux. “Édouard Louis­ é a melhor coisa que aconteceu na vida literária e política francesa em décadas”, diz Laurent. “Ele nos lembra da falsidade de nossas vidas e das razões pelas quais a França está em dificuldade.” A França vai apresentar-se ao mundo este ano, sediando os Jogos Olímpicos, mas é uma sociedade profundamente dividida e sob ameaça da direita mais radical.

O ar rarefeito e boêmio do Le Select, típico ambiente intelectual onde esse “pensamento” ocorre, está, obviamente, muito distante da infância de Louis, tão vividamente descrita em O Fim de Eddy. Sucesso instantâneo na França e depois no resto do mundo, o livro narra a adolescência de Eddy Bellegueule – nome verdadeiro de Louis – em um vilarejo não identificado na região do Somme, no norte do país. Eddy é gay, não é bom no futebol e sofre bullying na escola. É criado em uma família e uma comunidade gravemente disfuncionais, onde quase todos são racistas, homofóbicos, alcoólatras ou obesos, ou tudo isso ao mesmo tempo. Embora tenha sido aclamado na imprensa literária, o livro irritou os moradores de sua aldeia natal, que o acusaram de caluniar a comunidade.

Retrato de família. Os livros anteriores, Quem Matou Meu Pai e Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher, ambos publicados em português pela Todavia, relatam as vidas difíceis e tumultuosas de seu pai e sua mãe no norte da França – Compre na Amazon

Louis escreveu mais dois livros sobre sua família – lançados no Brasil também pela Todavia, que coloca agora nas livrarias Mudar: Método. O primeiro, Quem Matou Meu Pai, relata o declínio de seu pai depois que um acidente na fábrica o deixou desempregado e o Estado cortou seus benefícios. Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher, que veio em seguida, trata da vida difícil de sua mãe, Monique, cujas “lutas” incluíram a gravidez precoce, um primeiro casamento fracassado e o longo calvário do casamento com o pai de Louis, o irritado e perturbado Jacky.

“A vida dos meus pais era cheia de silêncios e mal-entendidos, e agora a distância da classe social também nos separa”, diz ele. “Eu precisava falar com eles e fazer isso nos meus textos. Agora que estudei e moro em Paris, tornei-me um inimigo de classe. Quando criança, eu os humilhava porque era gay. Quero reduzir toda essa violência, mas não se pode fazer isso por mera força de vontade.”

Seu último livro, L’Effondrement (O Colapso), a ser lançado em abril na França, é sobre seu irmão, que aos 38 anos teve a vida interrompida pelo desemprego e pelo álcool. Mas estamos no Le Select para falar sobre Mudar: Método, sua obra de autoficção de 2021, que segue O Fim de Eddy.

O livro acompanha a jornada de Louis pelo sistema de classes francês adentro. Seu sucesso escolar o leva da cidade natal para um colégio em Amiens, onde trabalha num teatro e faz uma nova amiga, Elena, que o apresenta à arte, à literatura e aos costumes da classe média, enquanto ele tenta se livrar de qualquer vestígio de sua origem, mudando sotaque, roupas, nome e até gestos.

Louis fala muito sobre política e dá voz a uma geração francesa mais jovem que se sente desconectada da polarização tradicional entre direita e esquerda

Ele deixa Amiens e vai para a universidade em Paris, abandonando Elena, que o ama e sonha com um futuro a seu lado. Na capital, conhece um novo melhor amigo, o filósofo e professor universitário Didier Eribon, figura proeminente na cena cultural francesa. Eribon, assim como Louis, cresceu alienado e gay na classe trabalhadora provincial.

Depois de ouvir uma palestra de ­Eribon sobre sua infância, Louis implora que ele o ajude a mudar sua vida. Eribon torna-se um mentor e apresenta Louis ao glamouroso meio artístico de Paris e à intelectualidade de esquerda radical. Enquanto constrói essa nova vida, Louis se sustenta vendendo seu corpo para homens mais velhos – o que é, para ele, deprimente e degradante.

Mudar não foi tão bem recebido na França quanto O Fim de Eddy. Para mim, entretanto, é muito melhor. Dez anos depois de O Fim de Eddy, ­Louis não faz mais o papel de vítima e não tem medo de revelar a própria maldade casual para com seus pais e amigos. É isso o que torna o novo romance tão atraente – é menos um livro de memórias miseráveis e mais O Talentoso ­Ripley contado pelo próprio Ripley, que, magro, loiro e um pouco desajeitado, está sentado à minha frente no Le ­Select, esperando ser questionado.

Começo com uma acusação simples: como podemos saber o que é verdade quando o lemos, e por que devemos confiar nele? “Não acho que isso realmente importe”, responde. “A verdade de um texto está em sua criação. Não importa como essa verdade finalmente apareça. O gênero autoficção é usado, por alguns, para descrever a obra de Annie Ernaux. A verdade emocional é mais importante do que nomes ou fatos. É isso o que você pretende descobrir como escritor, e é aí que está o risco, porque é assustador o que você descobre sobre si. Mas é o que você tem de fazer. Não há opção.”

Esta é uma resposta sofisticada, mas escorregadia; é claramente bem ensaiada, mas também exata. Verdade e ficção são inevitavelmente confusas na escrita de Louis. Ainda mais importante, o narrador, “Édouard Louis”, é o elemento ficcional inventado em Mudar, razão pela qual é rotulado como “romance” e não autobiografia.

Um dos modelos de Louis para esse tipo de truque narrativo é Jean Genet e, em particular, a suposta “autobiografia” de Genet de 1949, Diário de Um Ladrão. Uma das primeiras cenas de Mudar: Método abre com uma memória “genetiana” de um encontro sexual humilhante com um homem mais velho e rico, que paga pelo sexo com Louis, mas reduz pela metade o pagamento porque o jovem não teve um desempenho adequado.

Discutimos a ideia de humilhação, tema recorrente em Genet. “É muito importante para mim também”, diz Louis. “Já disse isso muitas vezes em público, que temos de pegar em armas contra a sociedade e roubar de volta o que foi tirado de nós, gays, mulheres, todos os grupos marginalizados.”

Apesar de seus protestos ocasionais em contrário, a política é claramente tão essencial para Louis quanto a literatura. Ao longo da carreira, ele dedicou tanta energia à publicação de manifestos e à participação em movimentos quanto à escrita literária. Ele diz que as duas atividades são inseparáveis.

Embora suas opiniões políticas sejam modernas – ele subscreve a teoria da interseccionalidade –, suas influências vêm de uma geração anterior. Uma delas é Pierre Bourdieu, para quem o capital social se baseia tanto no contexto cultural e nos contatos parentais quanto no que há em sua conta bancária. Louis, que editou e publicou um livro de ensaios sobre Bourdieu, absorveu claramente a lição: mudar a forma como você aparece para o mundo pode realmente mudar o seu mundo.

Avatar cultural. Editor-convidado e capa da revista Les Inrockuptibles, Louis tornou-se também um símbolo da luta contra a ideologia da direita radical representada, na França, por Marine Le Pen (à esq.) – Imagem: Redes sociais

Mais surpreendente talvez seja sua admiração por Richard Hoggart, o acadêmico inglês cuja obra clássica, As Utilizações da Cultura (1957), forneceu um modelo de como os jovens intelectuais britânicos oriundos da classe trabalhadora poderiam atingir a mobilidade social, mantendo suas raízes e antecedentes.

“Amo Hoggart porque ele não esconde a verdade”, diz Louis. “O capitalismo é o inimigo. Mas não é fácil enfrentá-lo. Mudar de classe também nunca é fácil, e não garante felicidade. Pode afastá-lo de uma vida autêntica. É isso o que meu livro diz. Existem muitos grupos marginalizados na sociedade, mas os desertores de classe são uma espécie de minoria oculta que vive um duplo exílio. Você não pertence, e provavelmente nunca pertencerá, adequadamente à classe para a qual se mudou, mas, ao mesmo tempo, nunca poderá voltar para a vida que deixou para trás, e isso pode deixá-lo melancólico.”

Em Mudar, é exatamente isso que o narrador sente ao final. Ele ascendeu a um lugar melhor na sociedade, mas sente uma nostalgia dolorosa pelo mundo abandonado de sua infância. Sente também remorso por todos aqueles que traiu, especialmente Elena, cuja mãe o acusa de “roubar” deles uma identidade cultural. A traição é, como Louis aponta, outro tema que ele “rouba” do Diário de Um Ladrão.

Há também gente na esquerda que pensa que Louis, o “desertor de classe”, traiu suas origens, mostrando apenas a suposta barbárie da classe trabalhadora, e que sua nova política apenas reflete as realidades da classe média. Outros críticos o acusam de narcisismo, esnobismo, autossatisfação, e até cunharam uma nova palavra, “proleofobia”, para descrever seu desdém pela classe trabalhadora.

Essa crítica foi agravada pela defesa por Louis do rompimento das redes familiares tradicionais e até mesmo os casais gays binários. Ele destacou em publicações e conversas a “amizade” tripla compartilhada com ­Eribon e outro amigo próximo, o escritor ­Geoffroy de Lagasnerie. Juntamente com outros amis, formaram um círculo emocional e intelectual que é também uma espécie de nova família.

Apesar da adesão de Louis a tais práticas radicais, a questão é até que ponto ele pode ser politicamente útil em termos práticos na França, onde o colapso do antigo e sólido apoio da classe trabalhadora à esquerda criou um vazio político que pode ser preenchido pela Reunião Nacional de Marine Le Pen. “Talvez não possamos deter os fascistas, pelo menos não agora”, diz ele. “Mas a velha política desapareceu e não voltará. Existem agora novas formas de pensar. Todos os desempoderados têm algo em comum, que é o início da resistência.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O talentoso Ripley francês’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo