Cultura
O sambista e o palhaço
Mussum, o Filmis dialoga com a tradição da comédia brasileira ao mesmo tempo que procura emocionar o público


Quando o roteirista Paulo Cursino entrou na TV Globo, em 1994, fazia três anos que Mussum havia morrido. Já então, segundo ele, a ideia de transformar a vida do comediante em filme pairava no ar. “Lembro que o pessoal do Casseta & Planeta chegou a pensar num projeto. Mas todo mundo esbarrava num ponto: que ator poderia interpretá-lo?”
Cursino, que escreveu algumas das comédias de maior sucesso do cinema brasileiro nos anos 2000, diz que a resposta para essa pergunta foi desvendada por ele e pelo cineasta Roberto Santucci na ilha de edição de Até Que a Sorte nos Separe (2012).
Na comédia, cabia a Ailton Graça o papel do melhor amigo do personagem de Leandro Hassum. Embora sua comicidade tivesse se revelado já no set, foi quando Santucci convidou Cursino para ver algumas cenas montadas que o roteirista viu surgir, em um trejeito do ator, o personagem que sonhava transformar em filme. “Ele, de repente, arregala os olhos e balança a cabeça, sacudindo as bochechas. Dei um pulo na cadeira: ‘Caramba, é o Mussum!’”
Três anos depois desse estalo, foi lançado o livro Mussum Forévis – Uma História de Humor e Samba, de Juliano Barreto. De pronto, o produtor André Carreira – parceiro de Cursino e Santucci em projetos como Tudo Bem no Natal Que Vem, da Netflix, Os Farofeiros e O Candidato Honesto – comprou os direitos da obra. Começava a nascer ali Mussum, o Filmis, que chegou na quinta-feira 2 ao circuito de cinema.
Ao longo desses dez anos, muita coisa, obviamente, aconteceu: atropelos para a viabilização econômica do projeto, crise na Agência Nacional do Cinema, pandemia e, também, o avanço no enfrentamento do racismo brasileiro. Tanto que Santucci, lá pelas tantas, abriu mão da direção do filme e convidou Silvio Guindane, ator e diretor preto, para assumi-la.
“Fizemos um filme popular com um corpo preto na frente”, diz o diretor Silvio Guindane
Desse conjunto de tropeços e de novas possibilidades nasceu um filme que dialoga com a tradição da comédia popular brasileira, a começar pelos próprios Trapalhões, mas que é também o retrato emotivo da trajetória de um homem preto e pobre que retorceu seu destino.
“Tínhamos um personagem que era um comediante preto, de enorme sucesso, mas que estava dentro de uma estrutura racista”, diz Guindane. “Nós não podíamos deixar de observar isso, até porque é óbvio que Mussum passou por muitos percalços e vivenciou essa relação casa-grande e senzala. Ao mesmo tempo, na dramaturgia, a gente não podia tirar a alegria e a força que marcam a saga do Antônio Carlos.”
O filme é uma biografia cronológica que procura, na contramão das biografias que recortam um período breve da vida dos personagens, dar conta da vida toda de Mussum. A alinhavar a trama está um fio afetivo: a relação dele com a mãe. “O Antônio Carlos, como tantos meninos pretos brasileiros, foi criado numa família pobre e matriarcal, com ausência de pai”, pontua Guindane.
Ao contrário do que se poderia supor, sobretudo em se tratando de um projeto formatado para chegar à casa do milhão de espectadores, Os Trapalhões, ainda que sejam o ponto alto do longa-metragem, estão longe de dominar a narrativa.
O surgimento de Mussum na cena artística musical, com o grupo Os Originais do Samba, é explorado com vagar e, inclusive, responde pelos dilemas desse homem que parecia movido pelo desejo de não desagradar ou decepcionar ninguém. O medo de deixar de ter o suficiente para a subsistência, comum a quem viveu na pobreza, deixou-o eternamente dividido entre ser o Carlinhos do reco-reco e ser o palhaço que a tevê tornou famoso e rico.
Seu percurso artístico comporta, como é comum nas cinebiografias, a presença de outras figuras célebres. É o caso de Elza Soares, Grande Otelo – a quem se atribui o apelido Mussum –, Jorge Ben Jor, Chico Anysio, o criador da inconfundível terminação “is”, e, é claro, seus três companheiros nos Trapalhões. O elenco é, no todo, muito bom.
Neste momento no qual o cinema brasileiro tenta recuperar o público nas salas de cinema – nenhum filme, desde a pandemia, chegou sequer a 1 milhão de espectadores –, Mussum, o Filmis é lançado com grande expectativa, até por derivar, de alguma forma, do fenômeno de bilheteria que foram Os Trapalhões.
“Filme popular é aquele que consegue gerar identificação com o público”, diz Guindane. “A maioria da população brasileira é preta, mas essas pessoas pagam ingresso para ver filmes em que não veem sua cor na tela. O que a gente tem, com Mussum, é um filme popular com um corpo preto na frente.” •
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O sambista e o palhaço’
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