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O rock menos pesado

Artistas trans começam a mudar a cara do Heavy Metal, estilo tido, historicamente, como viril, homofóbico e agressivo

Bandas diversas. As brasileiras Anna Chaos, da Umbilichaos, e Jê Landini, da MEE, estão à frente desse movimento – Imagem: Redes sociais
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Os fãs e artistas do rock pesado, em geral, e do ­Heavy Metal, em particular, sempre se vangloriaram da imagem de “maus” que costumava marcá-los. Tido como viril e agressivo, o estilo, durante muito tempo, foi pouco aberto às mulheres e, menos ainda, aos gays. Hoje, no entanto, parece que as coisas não são mais assim.

Não apenas no exterior, mas no Brasil, o gênero tem sido marcado, nos anos recentes, pelo surgimento e pela acolhida de artistas trans. Essa mudança tem feito, inclusive, com que a própria música mude um pouco. Temas existenciais que ora se entrelaçam com o poético, ora fazem fronteira com a denúncia crua do mal-estar civilizacional são as credenciais de artistas trans que apostam no estilo.

O Heavy Metal surgiu em fins da década de 1960, em resposta ao movimento Flower Power, cujas mensagens de paz e amor já davam sinais de esgotamento. Foi em 1968 que quatro jovens oriundos de famílias da classe trabalhadora da cinzenta Birmingham, no Reino Unido, se juntaram para formar o Black Sabbath. A banda não apenas se dispunha a falar sobre temáticas mais próximas de sua rea­lidade política e social cheia de desesperança, como também incorporava às canções elementos do terror.

De lá para cá, embora as bandas mais conhecidas fossem em sua maioria formadas por homens – caso do próprio Black Sabbath, e do Led Zeppelin e Deep Purple –,

foram surgindo algumas artistas mulheres. O que tendia a não se alterar era a “aura” de masculinidade dos músicos.

A primeira quebra nesse estereótipo aconteceu 30 anos depois do surgimento do Heavy Metal, em 1998, quando Rob Halford, vocalista do Judas Priest, deu a seguinte declaração: “Antigamente me chamavam de ‘Deus do Metal’, mas hoje estou mais para ‘Deusa do Metal’”. Até então, a homossexualidade era um assunto quase proibido no mundo das guitarras pulsantes e baterias velozes.

Quase outros 30 anos se passariam até que, no Brasil, outro tijolo fosse tirado­ do muro do preconceito erguido em torno do gênero: uma mulher trans é uma das mais admiradas artistas de ­rock pesado no País: Anna Chaos, da banda ­Umbilichaos, que possui nada menos que 13 discos gravados em estúdio.

Formada no que se pode chamar de one trans woman band, Anna toca guitarra, canta e programa os instrumentos restantes em um computador que a acompanha nas apresentações ao vivo.

“A população trans é pequena em comparação ao todo da população mundial. Embora muitas pessoas tenham se destacado nos últimos tempos na política e na música, temos pouca representatividade na sociedade como um todo”, diz ela, lembrando que, na prática, ainda são raras as bandas com integrantes trans. Fora do Brasil a banda nova-iorquina Liurgy e sua trans frontwoman, Haela Hunt-Hendrix, tem despontado como promessa com sua mescla de ­Black Metal e experimentalismo.

“Ainda temos um longo caminho para trilhar. No metal e no rock somos mais escassas do que na música pop”, diz Anna

“Ainda temos um longo caminho para trilhar. No metal e no rock somos mais escassas do que na música pop. A comunidade LGBTQIA+ ainda não vê o rock pesado como um espaço seguro”, afirma, referindo-se, justamente, à suposta virilidade que, por vezes, anda lado a lado com a homofobia.

A despeito do cenário ainda adverso, a vocalista relata que o Brasil acolhe bem seus shows – que acontecem na cena alternativa em festivais como o Kool Metal Fest no lendário Tendal da Lapa e o Centro Cultural da Juventude, localizado na Zona Norte da capital paulista. Se, por aqui, ela sempre nota cordialidade e ouve elogios do público, certa vez, em uma apresentação no Leste Europeu, passou por maus bocados.

“A pior experiência que tive foi em um show na Eslováquia. Havia um rapaz na plateia, que talvez estivesse bêbado, que disse algumas palavras ofensivas. Pedi para que não fizesse isso, mas ele insistiu, então tive de avisá-lo, educadamente, ‘que iria dar alguns socos em sua cara’”, diz Anna, que hoje consegue manter o senso de humor ao relembrar o episódio.

Jê Landini, vocalista e baixista trans não binária da banda MEE e integrante de mais três bandas de Hardcore – que carrega mais influências do punk – tem outra visão sobre a presença de pessoas trans nesse subgênero. Pelo fato de o Hardcore ser, historicamente, antipadrões, é mais fácil a abertura da cena para pessoas como ela.

“Sinto que a rebeldia e a contestação do metal sempre foram mais estéticas, sem estar necessariamente atreladas a uma consciência social e política”, diz Jê. “E não digo isso de maneira pejorativa, pois tocamos no mesmo circuito, mas, fundamentalmente, o Metal não era feito por pessoas que vinham de uma consciência das opressões e dos problemas sociais, mesmo em um país como o Brasil.”

A baixista enxerga, no underground, a chegada de uma nova geração de fãs de bandas como a dela, e acredita que essa plateia que comparece aos shows facilita a aceitação da cultura trans. “Independentemente da cena, o que tem mais efeito é a renovação do público”, diz. “Os mais jovens têm valores diferentes daqueles das gerações anteriores e estão se sentindo à vontade para vir no rolê e participar.”

É dessa forma que o rock pesado vai, devagar, absorvendo os novos valores da sociedade e se tornando mais diverso e, por que não?, mais leve. •

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O rock menos pesado’

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