Cultura
O reencontro com o público
Após três anos longe dos palcos, Irene Ravache volta à cena com Alma Despejada, suspensa pela pandemia


Ao fim da estreia de Alma Despejada, na sexta-feira 26, no Teatro Renaissance, em São Paulo, Irene Ravache despiu-se do papel de Teresa, a protagonista do monólogo, e voltou-se diretamente para o público para falar sobre o significado do encontro que, por pelo menos dois anos, esteve impossibilitado: aquele entre um ator e a plateia.
“Aboli a ideia de quarta parede, que seria aquela parede imaginária que separa os atores do público, há muito tempo. Não posso ficar no palco com meus pares, contracenando, como se o público não fizesse parte daquilo. Quem vai ao teatro, vai em busca de um encontro, de uma celebração conjunta”, havia dito ela, na véspera, em entrevista a CartaCapital.
Irene, naquele dia, tinha decidido até beber um café. Não dos descafeinados aos quais se habituou, mas um de verdade. “Ontem foi um dia tão puxado que falei: ‘Hoje vou ter de tomar um café’.” É que a reestreia de Alma Despejada fez com a agenda da atriz ficasse novamente lotada.
A peça tinha sido tirada abruptamente de cartaz em março de 2020, quando a pandemia fechou os teatros. Desde então, a atriz ainda não tinha voltado aos palcos. A alegria do retorno estava evidente nos sorrisos que, ao fim do espetáculo, ela distribuía, no lobby do teatro, a quem desejava cumprimentá-la.
Irene é, por vezes, restritiva nas entrevistas que aceita dar. Não porque não goste de conversar – bem ao contrário. Mas porque a agenda não permite.
Aos 78 anos, cheia de vitalidade e profissionalmente ativa, a atriz vive, em Alma Despejada, o papel de uma mulher que morreu, mas que não consegue se desapegar da casa onde atravessara a vida.
Na peça, da dramaturga Andréa Bassit, Teresa faz o que os vivos não podem fazer: olha para a sua vida com os faróis do carro iluminando aquilo que, na estrada, ficou para trás. Irene não nega que a pandemia, que trouxe a morte para mais perto de todos, mudou a percepção que ela e sua equipe tinham do texto.
“O texto continua igual, mas todos nós sentimos que nossa visão foi ampliada e que passamos a ter outro entendimento sobre tudo”, diz ela. “Perdemos muitas pessoas. Eu pensei que os idosos iriam morrer. Porque era isso que se dizia: que o grande grupo de risco eram os idosos. E muitos, de fato, morreram sozinhos, sem a possibilidade de um olhar afetuoso, do toque de uma mão.”
Irene recorda-se, nesse momento da entrevista, da fala do Ministro da Saúde sobre a escolha entre a vida de um jovem e a de um velho: que a do jovem valia mais. “Racionalmente, intelectualmente, concordo com ele. Tenho filhos, tenho netos, mas, quando essa possibilidade lhe é apresentada, ela machuca alguma coisa dentro de você, e você se pergunta: estou preparada para lidar com isso?”
Durante os períodos mais duros do isolamento social, Alma Despejada teve uma apresentação online no portal do Sesc. “Fiz aqui, onde estou sentada conversando com você. Fiquei exatamente assim, sem cenário, sem nada, narrando a minha história – a história da Teresa”, conta, pela tela do Zoom, sentada à mesa do escritório doméstico, com um pequeno sofá bege ao fundo e dois quadros e um abajur compondo o cenário.
“Acredito que o riso seja um aliado para nos salvar, na vida, de situações muito difíceis”
“Fiquei nervosa. E só não mais porque toda a equipe estava aqui. Via eles falando com outras pessoas, tentando ajeitar as coisas e, de repente, sumia tudo. E eu pensava: E se sumir durante, como vai ser?”, ri. “Mas, depois, me senti à vontade porque não tinha cenário. Com cenário, é outra coisa. Não gosto nem quando a televisão exibe trechos de peças. Porque são linguagens tão diferentes. O fato de eu estar praticamente em close o tempo todo é uma linguagem de vídeo.”
Rosto dos mais conhecidos e admirados das telenovelas brasileiras, Irene costuma contar que, quando menina, sonhava ser bailarina. Mas, um dia, ao acompanhar o noivo num teste, foi convidada para fazer uma leitura e ganhou um papel de destaque em Eles Não Usam Black-tie, na montagem de 1963, dirigida por Oduvaldo Vianna Filho e Paulo José.
Já a entrada na tevê se deu como apresentadora de telejornal. “Lembro que me disseram: quando acender a luz vermelha, você fala. Eu não vi luz vermelha nenhuma, de tão nervosa”, conta, num especial da GloboNews sobre seus 75 anos. Foi ainda comentarista esportiva, mesmo sem nada saber de futebol: “Escreviam, eu decorava e falava”.
A primeira novela da qual participou foi Paixão de Outono (1965) e, então, dezenas de outras vieram, com papéis que a tornaram extremamente popular. A televisão, diz, não a afastou do teatro, onde teve grandes sucessos de público, como Uma Relação Tão Delicada (1989) e Intimidade Indecente (2002), mas dificultou uma presença mais intensa no cinema brasileiro. “Era muito difícil conciliar a agenda”, diz.
Talvez por isso ela faça questão de contar que, da pandemia para cá, participou de três longas-metragens: O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, Enforcados, de Fernando Coimbra, e Passagrana, dirigido pelo ator Ravel Cabral.
“Uma vez me perguntaram a função social do ator. Sempre digo que a função do ator é mostrar”, repete. “Se daquilo que eu mostro ficar alguma coisa para alguém, meu trabalho terá feito sentido.”
Casada há 52 anos com o jornalista Edison Paes de Melo, Irene tem dois filhos e três netos. “Se me perguntam como estão meus filhos, digo: ‘Velhos!’”, brinca, com o humor afiado que, no palco e na vida, parece constituí-la. “Acredito que o riso seja não só transformador e subversivo, mas um grande aliado para nos salvar, na vida, de situações muito difíceis.” •
Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.
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