Cultura

O recomeço, mais uma vez

A Cinemateca Brasileira reabre para o público enquanto lida, internamente, com perdas e danos

Pilhas de rolos. Quimicamente instável, a película cinematográfica precisa ser acompanhada de perto rotineiramente. O tempo de descaso cobra agora seu preço - Imagem: Vincenzo Pinto/AFP e Rovena Rosa/ABR
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Após dois anos fechada para o público – e um ano e meio também para quem trabalhava lá –, a Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, em São Paulo, foi reaberta na quinta-feira 12, com a exibição de Macunaíma (1969).

Na semana anterior, um jardineiro retocava a área verde onde fica uma tela enorme e as duas salas de cinema cheiravam a tinta fresca. “A gente voltou em novembro, e agora precisa devolver a Cinemateca para as pessoas”, dizia Gabriela Sousa de Queiroz, diretora técnica da instituição. “Queremos ver os piqueniques no gramado, queremos ver as pessoas entrando na biblioteca.”

A retomada significará, para os funcionários que passaram meses sem salários e chegaram a ser demitidos, a materialização da possibilidade de reconstrução de um lugar castigado. Quando, em novembro de 2021, eles puderam entrar novamente ali, estavam com o coração na mão: o que teria acontecido aos filmes e documentos deixados ao deus-dará?

“O material não foi verificado por dois anos. E nitrato não aceita desprezo”, resume Gabriela

As atenções, de início, se voltaram para o depósito das obras em nitrato, um material altamente inflamável. Esses rolos, que começaram a chegar à instituição na década de 1950, ficam em quatro câmaras estrategicamente localizadas em um canto do terreno. Elas são estreitas e guardam latas empilhadas. Cada lata contém 360 metros de filme.

A primeira missão da equipe readmitida após a assinatura de um novo contrato de gestão com o governo federal foi, literalmente, desenrolar aquilo tudo e avaliar o que estava em risco. Hoje, na câmara de número 4, o cheiro é insuportável. Lá, foram colocados os rolos que não podem mais ser recuperados. Em outro espaço, estão aqueles em avançado ­estado de deterioração, que precisam de uma intervenção emergencial. “Esse material não foi verificado por dois anos. E o nitrato não aceita desprezo”, diz Gabriela.

O acervo chegou a ter, nas contas de Carlos Augusto Calil, presidente do Conselho, quase 5 mil rolos de nitrato. Depois de quatro incêndios – simbólicos dos repetidos sustos e recomeços da instituição –, sobraram uns 3 mil. Cerca de 50 estão sendo socorridos. Jesus Fernandez, técnico de restauração que trabalha há 16 anos na Cinemateca, é quem os recebe no laboratório.

Em uma máquina “enroladeira”, Jesus observa o sumiço da perfuração em um dos lados do negativo. Já na mesa “comparadeira”, explica ele, é possível colocar, simultaneamente, quatro versões de um mesmo filme para ver se há, em alguma delas, uma cena que outra não contém. Um equipamento que também faz parte do seu dia a dia é a “copiadeira”.

O laboratório, neste momento, é ocupado ainda por grandes caixas pretas, de material plástico, que nada têm a ver com preservação. Estão ali para receber a água que, sempre que chove, cai no prédio. “Quando voltamos para cá, novos problemas se apresentaram”, diz Gabriela. Um deles foi o defeito na calha: agora, a Cinemateca tem também goteiras. Mas logo terá início o conserto do telhado.

Sobre o Brasil. A cópia restaurada de Macunaíma, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, marca a reabertura – Imagem: Joaquim Pedro de Andrade

“A Cinemateca passou dez anos abandonada pelo governo e as consequências disso estão aparecendo”, diz Calil, lembrando que o desastre vinha sendo anunciado ainda antes de Bolsonaro chegar ao poder. “Teve a enchente (de 2020), teve o incêndio (de 2021), mas teve também o dia a dia, que não pôde ser tocado.”

E esse dia a dia é algo que escapa a qualquer pessoa que não lide com preservação. Ou seja, escapa praticamente a qualquer pessoa. Não por acaso, tornaram-se comuns, ante a crise, sugestões com soluções mágicas. A mais batida era: “Basta digitalizar”. Não basta. É preciso preservar a película e é preciso, em muitos casos, restaurar para preservar.

A lista de filmes restaurados pela Cinemateca Brasileira inclui as obras de Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Mário Peixoto e Rogério Sganzerla, entre outros, além de produções de estúdios como a Vera Cruz e a Cinédia. “A digitalização é fundamental para a difusão, mas ela não resolve a preservação”, diz Calil.

Para o público, a sede da Vila Clementino é uma grande área verde com uma biblioteca e duas salas de cinema. Mas a parte do fundo do terreno abriga, além dos temidos nitratos, o depósito de matrizes, que são rolos em acetato e poliéster em bom estado de conservação.

“Esse é o coração da Cinemateca”, diz Gabriela, enquanto abre a câmara onde, a 10 graus, repousam os negativos originais de som e imagem. Num lugar separado estão os acetatos que não sobreviveram aos meses de descaso: estão derretidos e, do lado de fora das latas, vê-se o negativo que escorreu.

A digitalização é fundamental para a difusão, mas não resolve a questão da preservação

O que faz o coração da Cinemateca nem sempre chega ao público. E quanto mais precarizada estiver a instituição, menos chegará. Das matrizes, é preciso fazer cópias e, depois, digitalizá-las. E isso requer tempo, dinheiro e mão de obra.

“Um rolo de dez minutos de um filme virgem da Kodak custa cerca de mil dólares”, diz Calil, dando uma pista do tamanho do desafio. A Cinemateca, hoje, recebe recursos do governo federal e conta com o apoio de alguns mecenas. Mas os valores estão muito aquém do necessário – inclusive, porque se vive ainda o rescaldo da enchente e do incêndio no galpão da Vila Leopoldina.

A equipe, às vésperas da reabertura, trabalhava na conclusão de um relatório que, nas palavras de Gabriela, será a “dolorosa resposta para a cidade” de tudo o que aconteceu. O laudo da polícia técnica não foi concluído, mas é praticamente certo que o fogo tomou o espaço da Vila Leopoldina em decorrência de um erro na manutenção – teria se utilizado, na limpeza, um produto inflamável.

Estima-se que tenham sido perdidos, definitivamente, cerca de 7 mil rolos. No caso do cinema brasileiro, eram cópias de obras preservadas em outros formatos na Vila Clementino. O que se perdeu quase por completo foi o acervo da Pandora Filmes, que incluía Bergman, Buñuel, Eisenstein, Irmãos Taviani e Monicelli.

Foram perdidos também documentos de instituições como o Conselho Nacional de Cinema (Concine), o Instituto Nacional do Cinema (INC) e a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Ironicamente, o que sobrou da Ancine é aquilo que tinha sido separado para uma última avaliação antes do descarte – agora, por ter sobrevivido, acabou por retornar para a Vila Clementino.

“De toda forma, o que queimou foi menos do que aquilo que foi salvo”, diz Maria Dora Mourão, diretora da Cinemateca, que conta também que o laboratório de restauro foi reativado e que, nos planos para o futuro, há programas de formação de público e difusão. “Mas não podemos nos esquecer de que a preservação é fundamental. Sem isso, esse material todo desapareceria”, reitera.

Dias antes da reabertura, Priscila ­Cavichioli, revisora de filmes, analisava os seis rolos de Macunaíma. “Estava com um pouco de mofo por cima, então tenho de ver se não tem fungo. Você não ouve um barulhinho? É a umidade”, diz, dando um pouco de concretude ao que se faz nesse lugar que, teimosamente, segue guardando um pouco da memória do Brasil. •


JANELAS PARA OS ACERVOS

A pandemia levou as cinematecas de vários países a criar programações para o streaming

Por Cássio Starling Carlos

Fellini. A Estrada da Vida terá sessão online na Film Foundation – Imagem: Paramount Pictures Studios

Imagine um mundo com uma população apenas de criancinhas, no qual ter nascido há cinco anos ou mais significaria ser velho. O ritmo atual de lançamentos de produtos audiovisuais vem gerando esse efeito, criando um volume de novidades impossível de ser consumido e que é descartado sem ser notado. O efeito dessa acumulação é ainda maior sobre os filmes lançados há pouco ou muito tempo atrás.

A reabertura da Cinemateca Brasileira desperta o interesse pelos materiais que, se sabe, a instituição guarda. A precarização da instituição não nos permite criar grandes expectativas em relação à programação e aos restauros. As salas, que antes eram ­Petrobras e BNDES, perderam o patrocínio e passaram a se chamar Oscarito e Grande Otelo. O ciclo O Cinema Sem Medo de Mojica, com quatro filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, reinaugura os dois espaços nesta semana.

A Cinemateca, de toda forma, insere-se, nesta nova fase, em outro contexto, no qual o streaming passou a ser um depositório de novidades, mas também uma janela para os acervos e um caminho para se alcançar outro tipo de público.

E, ainda que de forma tímida, a Cinemateca parece tentar aproximar-se desta nova forma de difusão. A instituição lançou, em parceria com a plataforma Itaú Cultural Play, uma seleção de conteúdos que dificilmente teria espaço no formato convencional de exibição. Os sete títulos da seleção O Cinema Sempre Foi Colorido demonstram como eram utilizadas diversas técnicas para a obtenção de efeitos cromáticos. Veneza Americana (1925) e Companhia Docas de Santos (1928) são belos exemplos do tingimento e de viragem da película, recursos então comuns na criação de atrações visuais, usados também para indicar mudanças temporais e climáticas entre imagens diurnas e noturnas ou dias quentes e frios.

Os sete curtas da série ­Veja o Brasil, feitos nos anos 1950 pelo pesquisador ­Alceu ­Maynard Araújo, ­revelam aspectos da cultura popular que compõem a ideia de identidade. Neste caso, a preservação das imagens do que fomos permite entender quem somos.

A difusão de conteúdos antigos por meio do streaming parece ter ganhado impulso com a pandemia. Ao se verem com as portas fechadas, diversas instituições dedicadas à preservação e à restauração, experimentaram alternativas de exibição.

Em 2020, a Cinemateca Francesa, referência mundial em preservação, lançou a Henri. A plataforma, cujo nome homenageia o fundador da instituição, Henri Langlois, exibe filmes antigos e contemporâneos e disponibiliza conteúdos novos gratuitamente todas as semanas.

Também em 2020, a Cineteca Italiana contornou as restrições sanitárias com exibições online de destaques do acervo. Mesmo após a reabertura das salas, a programação foi mantida, combinando uma seleção de conteúdos pagos e materiais históricos nos quais se encontram animações, publicidades e documentários que mostram uma Itália que nenhum turista consegue ver.

A Mubi inaugurou, em abril, um ciclo que vai exibir, a cada mês, dois títulos restaurados pela Film Foundation. A instituição, fundada por Martin Scorsese, patrocina a restauração de títulos do cinema do mundo, tesouros de cinematografias periféricas e, por isso, pouco conhecidas.

O camaronês Muna Moto (1975), o iraniano Chess of the Wind (1976) e o turco The Law of the Border (1966) já estão disponíveis na Mubi, que vai integrar, no total, 16 títulos ao catálogo.

E a própria Film ­Foundation inaugurou, na segunda-feira 9, a Restoration Screening Room, uma sessão online mensal que exibirá, durante 24 horas, um filme do acervo, acompanhado por participações de convidados.

A estreia, com Sei Onde ­Fica o Paraíso (1945) reuniu Scorsese em bate-papo com a diretora Joanna Hogg, depoimentos da montadora Thelma Schoonmaker e entrevista com a atriz Tilda Swinton.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O recomeço, mais uma vez”

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