Cultura
O químico literato
Em A Tabela Periódica, o autor italiano Primo Levi enlaça as vivências em um laboratório aos mistérios existenciais
Publicado em 1975, A Tabela Periódica é o quinto livro de Primo Levi (1919–1987), escritor italiano conhecido pelos relatos de sua sobrevivência a Auschwitz – especialmente É Isto Um Homem?, de 1947, e A Trégua, de 1963.
Levi, que era químico, usa os contos de A Tabela Periódica para falar não apenas de suas próprias experiências, mas de detalhes e cenas de vidas alheias. “Parece que este é o meu planeta (e não me queixo nem um pouco disso)”, escreve Levi no conto Níquel. “Sou alguém a quem muitas coisas são contadas.”
Esse é o fio condutor do livro: uma voz narrativa que se identifica diretamente com Primo Levi e que busca fazer justiça, pela via da ficção e da narração, às histórias alheias que lhe foram confiadas. Os recursos mobilizados, contudo, são inúmeros, e isso mostra o alto grau estético que Levi alcançou.
Ele emprega a via do humor, por exemplo, com Bortolasso, o “idiota da mina”, “forte que nem um mulo” e “sujo como um cadarço”. E emprega a via da rememoração melancólica quando evoca Alberto, companheiro do campo nazista, dotado de “uma vontade boa e forte”, com gestos e palavras que tinham “virtudes libertadoras”: naquele lugar, “ninguém foi tão amado quanto ele”.
Em paralelo à voz narrativa, evidentemente, está o tema organizador da “tabela periódica” – cada um dos 21 contos leva como título um elemento (Chumbo, Mercúrio, Enxofre, e assim por diante).
Tais elementos químicos aparecem, com frequência, em menções diretas. É o que acontece, por exemplo, quando Levi precisa, no laboratório, preparar o sulfato de zinco; ou testar o nível de fósforo em plantas como a sálvia, o quelidônio e a salsinha. Eles, no entanto, servem também como plataformas de experimentação filosófica e existencial.
A Tabela Periódica. Primo Levi. Tradução: Maurício Santana Dias. Companhia das Letras (256 págs., 79,90 reais)
“É o espírito que doma a matéria, não é mesmo?”, pergunta o narrador em Cromo. E, no conto Níquel, os elementos químicos são como caçadores que nunca se rendem “à matéria incompreensível”: “A natureza é imensa e complexa, mas não é impermeável à inteligência”.
Por outro lado, o que garante a densidade humana de A Tabela Periódica é a consciência de Levi de que, ao lado da ordem (a tabela, os experimentos, as quantidades), existe sempre o caos (a violência, a guerra, a intolerância), mutuamente dependentes.
O que está controlado e estável pode, de uma hora para outra, se transformar, como em Níquel, quando Levi fala de seu período como resistente na guerra: “Alguém nos traiu e, no alvorecer de 13 de dezembro de 1943, acordamos cercados”; “Eles eram trezentos, e nós, apenas onze”. E, no laboratório, os procedimentos podem falhar, sem aparente explicação: “Agitamos em vão um potente ímã na suspensão aquosa”, “não conseguimos obter senão um resquício de ferro”.
Em Primo Levi não se trata apenas do relato de experiências individuais – embora isto seja determinante para a relevância de sua obra –, mas do modo como a trajetória singular se mescla ao contexto, à época e aos destinos alheios compartilhados no interior de uma comunidade ao longo de décadas.
Essa multiplicidade de registros modifica a forma narrativa e, consequentemente, seus usos e interesses, como o próprio Levi aponta: “A realidade é sempre mais complexa que a invenção: menos penteada, mais áspera, menos redonda. É raro que permaneça em um só plano”.
Por mais que A Tabela Periódica prometa ordem e organização, o que dá sustentação ao seu projeto é sua feição “áspera” – ou seja, aquela que exige responsabilidade e perdão, palavras-chave do universo de Primo Levi. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
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Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O químico literato’
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