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O que pode esta língua?

Fala, Falar, Falares mergulha no aspecto físico da linguagem e explora a diversidade do português no Brasil

O que pode esta língua?
O que pode esta língua?
Entre palavras, imagens e sons. Caetano Galindo e Daniela Thomas, os curadores, procuraram, a partir da junção entre forma e conteúdo, dar materialidade a algo invisível – Imagem: Guilherme Sai e Wellington Almeida
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A primeira vez que viu a tela do celular brilhar tarde da noite, Caetano Galindo estranhou. Ao longo do último ano, no entanto, a cena virou rotina. Cada nova notificação vinha acompanhada por uma mensagem inquieta da multiartista com quem topou dividir a curadoria da exposição Fala, Falar, Falares, aberta em 28 de março no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

“Você não elabora coisas pequenas ou lineares com Daniela Thomas”, brinca o linguista. Os dois se conheceram em 2020, quando estiveram juntos nos bastidores da peça Língua Brasileira, dirigida por Felipe Hirsch. Três anos depois, Daniela dirigiu Georgette Fadel e Bete Coelho na montagem de Ana Lívia, primeira aventura de Galindo como dramaturgo.

A convite do museu, eles se reuniram novamente no ano passado, dessa vez para embarcar em uma jornada rumo à descoberta das muitas formas de se expressar por meio do português no Brasil. Trata-se de um tipo de projeto perfeito para a dupla, que trabalha de forma complementar.

Como cineasta, diretora e cenógrafa, Daniela tem uma trajetória marcada por criações que dialogam com o público sem perder aquilo que se pode chamar de autoria – no mês passado, ela festejava em Los Angeles o Oscar de melhor filme internacional para Ainda Estou Aqui, do qual foi produtora associada.

Galindo, por sua vez, é professor da Universidade Federal do Paraná ­(UFPR) e tradutor reconhecido e requisitado. Responsável por uma premiada versão de Ulysses, de James Joyce, tornou-se um autor a figurar em listas de mais vendidos com Latim em Pó – Um Passeio Pela Formação do Nosso Português (Companhia das Letras), que aborda o idioma do Brasil de forma bem humorada e apaixonada.

Esse amálgama entre forma e conteúdo gerou faísca. Para falar sobre como se fala, a primeira tarefa que os dois se impuseram foi a de materializar algo invisível. “Prestar atenção na respiração faz a gente prestar atenção no primeiro elemento que gera o fenômeno da linguagem. E tudo começa com o ar sendo modulado”, explica o curador. A partir dessa constatação, foi engendrado um dispositivo que captura o som da respiração e o transforma em uma projeção de ondas coloridas de acordo com o inspirar e expirar do visitante.

Na sequência, imagens gravadas durante uma ressonância magnética mostram como os músculos da região da face e do pescoço se movem por dentro enquanto se fala português. O resultado é uma complexa engenharia mecânica da qual, simplesmente, não nos damos conta.

Ao colocar o corpo em foco, Galindo e Daniela valorizam os aspectos físicos envolvidos na produção de linguagem e, com isso, cobrem parte do título prometido pela exposição: o que é a fala e como ela vira ação. Mas faltam ainda os “falares”. Nesse ponto, a discussão se torna ainda mais rica.

“Não existe um sotaque de cada lugar. Existem zilhões de versões”, afirma Galindo

Em uma sala, dezenas de pessoas anônimas contam histórias. A missão dos visitantes é ouvir tudo e descobrir em qual estado brasileiro elas vivem. Apesar de divertida, a tarefa não é fácil. “A gente fez questão de não pegar estereótipos porque não existe uma fronteira clara entre línguas. Não existe um sotaque de cada lugar. Existem zilhões de versões. Às vezes você pode encontrar um paraibano que fala mais parecido com um pernambucano do que dois pernambucanos entre si”, diz Galindo.

A brincadeira se desdobra em uma roda de conversa entre 12 pessoas de diferentes partes do País. Elas expõem inquietações sobre reconhecimento e pertencimento. “Sotaque e identidade estão entrelaçados. O modo como se fala é extremamente íntimo, e revela a forma pela qual você reflete sobre sua própria condição”, afirma Daniela.

Sotaques também são alvo de preconceitos. Para tensionar essa percepção, os personagens escolhidos borram o clichê. O baiano é loiro e branco. A paulista tem descendência indígena. A roda inclui ainda uma intérprete de Libras.

Em uma exposição guiada pela distinção do som de muitas falas, a acessibilidade para pessoas surdas poderia ser um desafio. A busca pela inclusão trouxe, porém, mais um elemento: as variações de sinais de acordo com o lugar do País, devidamente apresentadas na tradução dos depoimentos.

“Essas pessoas estão tematizando sua singularidade, mas não como exclusão. Essa é uma síntese difícil de encontrar hoje em dia: a celebração da impossibilidade de sermos iguais. Que lindo sermos todos radicalmente diferentes”, exalta Galindo.

A diversidade contrasta com uma suposta neutralidade de sotaque no português falado nos meios de comunicação de massa ao longo do século XX, como o rádio, o cinema e a televisão. As facilidades de produção de conteúdo no mundo digital e a capilaridade da internet mudaram essa configuração, ampliando a convivência com outros modos de falar.

“Ainda estamos começando a perceber os efeitos disso, mas parece estar havendo certa uniformização do sotaque urbano das capitais. Ao mesmo tempo, estamos conhecendo e tolerando melhor a diversidade linguística”, afirma o pesquisador. “Há poucas décadas, era inimaginável que a locução de uma publicidade nacional tivesse sotaque pernambucano. Hoje, com frequência, não precisa ter uma explicação para que alguém fale baianês ou gauchês na televisão.”

Na perspectiva de Galindo, essa mutação é parte intrínseca da riqueza de cada idioma. “Ortografia é lei, mas ninguém legisla sobre a língua. Ela é regida pela mão invisível do coletivo. É a nossa vontade de nos considerarmos participantes desse processo que ajuda a definir para onde ela vai. Isso faz de um idioma uma coisa muito estranha e muito linda em termos de aprendizado sobre convívio de multiplicidades e sobre democracia.” •

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que pode esta língua?’

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