Cultura

O que era bom para o Brasil

O documentário O Dia Que Durou 21 Anos expõe a contribuição americana para destituir em 1964 um inimigo do capital

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O silêncio estratégico aconselhado por Lincoln Gordon provou-se premonitório. O ex-embaixador americano no Brasil pretendia desse modo apenas imiscuir-se na violação aos direitos humanos ocorrida no País a partir do golpe de 1964. Seu pensamento atravessou mais de duas décadas, quando a abertura veio romper o contexto de vozes caladas a partir de 1985. Desde então, o cinema documental tem sido um dos espaços reveladores e de discussão sobre a ditadura. Henning Boilesen, Carlos Marighella e em breve Iara Iavelberg são personagens das duas forças em jogo em função também de cuidadosos estudos na tela. Agora é a vez de Gordon, os chefes da Casa Branca e o influente aparato dos EUA ter a participação detalhada no retrocesso histórico brasileiro.

O Dia Que Durou 21 Anosexpõe a participação dos Estados Unidos no golpe de Estado e a ascensão dos militares, além de algo mais. A possibilidade de ingerência americana foi por muito tempo tida como paranoia da esquerda. O filme de Camilo Tavares comprova com minuciosa documentação, imagens inquietantes e áudios surpreendentes que os militantes contra a política instalada estavam certos. Encontram-se lá registrados os telegramas trocados entre o diplomata e o presidente John Fitzgerald Kennedy e seu sucessor Lyndon Johnson. Entre os de calibre, aquele do Departamento de Estado que descreve a Gordon o início da Operação Brother Sam, ou seja, a etapa final na derrubada do mandatário João Goulart, recém-eleito pelo voto popular.

Conhecíamos a partir de documentários nacionais bem fornidos como Jango, de Silvio Tendler, a complexa tarefa posta em prática para tirar do poder o presidente brasileiro tido como comunista. Imagem essa reforçada, diz-nos o novo filme, por telejornais americanos ao compará-lo a Fidel Castro e o Brasil a uma nova Cuba. Ou, mais preocupante ainda, dizia Gordon, a uma China de versão ocidental. Para Kennedy, ele avalia que Goulart poderia se tornar um ditador de traço populista, como Juan Perón na Argentina. São alguns dos muitos exemplos audiovisuais do filme, pouco conhecidos até mesmo nos Estados Unidos, mas inéditos por aqui, assegura Tavares.

Aos 41 anos, o diretor dedicou-se por mais de cinco ao projeto e contou com uma assessoria privilegiada. Camilo é filho do jornalista e ex-militante Flávio Tavares, um dos presos políticos trocados pelo embaixador Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Ao procurar conhecer melhor a trajetória do pai, que se exilou com o grupo no México, onde o diretor nasceu, leu o livro de memórias de Flávio e idealizou o filme a partir dele. Mas uma pasta reavivada pelo pai, que continha entre os documentos um dos telegramas, levou-o aos arquivos de Washington e à descoberta de material muito mais precioso. “A partir disso, o filme mudou de foco”, diz o cineasta a CartaCapital. “A documentação encontrada, a exemplo das correspondências, é conhecida e estudada há muito por pesquisadores americanos, mas nunca soubemos ter sido revelada no Brasil. Foi surpresa até para meu pai.”

Tal espólio, por décadas classificado como altamente secreto, encontra-se aberto a pesquisadores nos EUA. Entre as imagens estão situações das quais Tavares sempre ouvira falar, como a visita de Jango a uma base militar do Nebraska, capitaneada por seu algoz Gordon. Para muitas dessas pérolas, o realizador contou com o apoio de Peter Kornbluh, especialista ligado ao Arquivo de Segurança Nacional, e com o acervo das bibliotecas batizadas com os nomes dos dois presidentes do período. Vêm à tona, por causa dessa pesquisa, protagonistas como Robert Bentley, assessor de Gordon na embaixada, e Vernon Walters, seu adido militar. O primeiro é entrevistado e, em tom evasivo, comenta que o apoio americano era para ele não mais que uma polêmica quando chegou ao País. Negará, em seguida, ter ouvido falar da Operação Brother Sam. Ambos testemunharam em documentos, no entanto, a aposta em Castelo Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, como figura ideal para atender às expectativas americanas, o que se deu ao assumir a Presidência e se tornar o primeiro presidente do regime.

Na operação fica implícita a impossibilidade de ignorância, tamanha sua estrutura, com o despacho ao Brasil de navios de guerra da Marinha americana e munição pesada. Kornbluh mostra ainda como se tornaram triviais ações de propaganda encobertas pela CIA para pressionar o novo governo, a exemplo do estímulo a greves, editoriais da imprensa contra Goulart e financiamento de campanhas a candidatos opositores. Num projeto mais elaborado, relembra-se a criação de dois núcleos de sustentação da direita, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipes, e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o Ibad.

É do analista uma frase-síntese no filme, quando lembra que toda a iniciativa americana aconteceu, por hipótese, em nome da democracia. Com essa bandeira, chegou-se ao Ato Institucional nº 1, que cassou os direitos políticos. Entre as figuras nacionais que debatem o passado, estão os militares Newton Cruz e Jarbas Passarinho. Este foi o signatário da liberação de Tavares em 1969 e a quem, desavisado, concedeu a entrevista, num dos lances surpreendentes do documentário.

Casa Branca lá e cá


Uma safra de filmes recupera personagens marcados pela ditadura

Alguns metros separam o destino comum de dois personagens do cenário político dos anos 1960, rivais em seu credo. Carlos Marighella, guerrilheiro de esquerda, foi assassinado em 1969 na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Dois anos depois, próximo a uma das esquinas da rua, o empresário Henning Boilesen morreu alvejado por organizações de combate à ditadura. Dinamarquês baseado no Brasil, integrava o grupo empresarial que financiava o aparato para perseguição, tortura e morte de militantes como Marighella. A memória distante desses acontecimentos enredados foi revigorada com a realização dos recentes documentários Marighella, também focalizado anteriormente por Silvio Tendler, e Cidadão Boilesen.

São exemplos da atenção do documentário brasileiro a um dos períodos mais controversos da história nacional. O processo, mais do que buscar um painel ambicioso, tem sido pontual, como se dá em Hércules 56, no qual Silvio Da-Rin repassa o episódio da troca de presos políticos pelo embaixador Charles Elbrick. No avião que dá título ao filme, com destino ao México, estava Flávio Tavares. Às figuras primeiras do universo da esquerda soma-se Iara Iavelberg, a companheira de Carlos Lamarca, cuja vida fora revista por ficção de Sérgio Rezende.

Em Busca de Iara, de Flavio Frederico, estreia dia 12 no festival de documentários É Tudo Verdade. O evento exibe O Fim do Esquecimento, de Renato Tapajós, e recupera seu média-metragem Em Nome da Segurança Nacional, de 1984. Tendler é relembrado com Os Anos JK (1980) e Jango (1984), mesmo programa escalado pela SescTV para domingo (31), somado a Paulo Companheiro João, de Lur Gomes, a partir das 19 horas. Ainda no evento, sete curtas-metragens do Ipes. De caráter afetivo e menos engajados na crítica histórica do período são Marighella, de sua sobrinha Isa Grispum Ferraz, Diário de uma Busca, de Flávia Castro, exibidos nos cinemas, e Os Dias com Ele, de Maria Clara Escobar. O “ele” em questão é o filósofo perseguido Carlos Henrique Escobar, em retrato de descoberta realizado por sua filha, vencedor do último Festival de Tiradentes.

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