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O que é uma livraria hoje?

A florescência das livrarias de bairro chama a atenção para as novas feições e também para os riscos do negócio do livro na era pós-Amazon

Papel. A Megafauna serve de inspiração a muitos dos novos negócios. Alessandra Effori, Isadora Peruch e Luciana Gil abriram na semana passada a Bibla – Imagem: Bruno Donato e Tuca Vieira
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No Alto de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, foi aberta, na sexta-feira 10, a Bibla, novo espaço a integrar a lista de livrarias de rua que, após a quebra das grandes redes, só faz crescer na cidade. No sobrado , que abriga cerca de 4 mil títulos, não faltam nem cadeiras e sofás, onde se pode confortavelmente folhear um livro, nem uma alentada cafeteria.

Os móveis, que dão à Bibla certo ar de casa, foram garimpados pelas sócias Isadora Peruch, Luciana Gil e Alessandra Effori em leilões e lojas de móveis usados. “A gente queria que fosse parecido com uma casa: um lugar onde as ­pessoas venham também para conversar”, diz ­Luciana, enquanto experimenta, dois dias antes da inauguração, o pequeno sanduíche de salmão que fará parte do cardápio.

Luciana é psicóloga e, ao longo da pandemia, foi percebendo que a literatura se fazia mais e mais presente em sua prática clínica. Alessandra, formada em Letras, e dona de uma sólida carreira como gestora cultural, também foi vendo – após morar em Bruxelas e fazer um curso de escrita criativa – os livros ocuparem cada vez maior espaço dentro de si.

A terceira sócia, Isadora, atuou no mercado audiovisual, trabalhou em uma cafeteria, migrou para o mundo dos vinhos e, no ano passado, decidiu que queria abrir uma cafeteria na Praça Professora Emília Barbosa Lima. Ao saber do plano, uma amiga lhe sugeriu que conhecesse Luciana e Alessandra. Das afinidades e complementaridades entre as três, nasceu a Bibla.

Em 2022, em uma reportagem da Folha de S.Paulo que radiografava o fenômeno das pequenas livrarias de rua, Walter Porto escreveu que, para muitos dos proprietários, abrir uma livraria “se parecia com construir um refúgio”. A livraria de rua é, de fato, um negócio de baixa escala e sempre envolto por uma aura de sonho.

“Fazemos parte de um movimento de ocupação das ruas”, diz uma das sócias da Bibla

As sócias da Bibla não contrariam essa afirmação, mas acrescentam a ela um aposto. “Fazemos parte de um movimento de ocupação das ruas e de criação de um senso de comunidade”, diz Alessandra. “É claro que pensamos em como tornar o negócio viável, mas abrir uma livraria de rua sempre terá algo de resistência.”

A realidade concreta do mercado de livros indica, além disso, que abrir uma livraria no Brasil de 2024 implica um risco nada pequeno. “Tenho uma grande preocupação em relação ao futuro das livrarias no Brasil”, tem repetido Alexandre Martins Fontes, dono da tradicional Martins Fontes e, desde o início do ano, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL).

Procurado por CartaCapital para refletir sobre a florescência das livrarias de rua em São Paulo, Fontes quis ampliar a conversa para o que ele chama de ecossistema do livro, hoje em profundo desequilíbrio e no centro de uma disputa política. O mercado aguarda, com grande expectativa, a votação do Projeto de Lei nº 49, de 2015, que institui a política de preço fixo para títulos com até 12 meses de existência.

“A possibilidade de sobrevivência das livrarias no Brasil depende da aprovação do PL”, diz. O PL, apelidado de Lei ­Cortez, está na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado e, se aprovado, seguirá para a Câmara. Embora apenas repita uma prática regulatória existente em inúmeros países, a lei, por supostamente atingir o preço dos lançamentos, tende a gerar desconforto na opinião pública. “Quando o consumidor ouve falar em limitação de descontos, cria-se um clima contra a lei”, diz Fontes.

O PL estabelece que o teto do desconto sobre o preço de capa dos lançamentos a ser dado por uma livraria é de 10%. E, na prática, apenas a Amazon consegue dar descontos maiores que esse. Uma ­livraria – seja ela pequena, média ou ­grande –, que vive exclusivamente da venda de livros, não pode abrir mão de suas margens. “Acho importante repetir que não se trata de uma lei contra a Amazon, e sim de uma lei contra o monopólio e a favor de mais livrarias nas ruas de nossas cidades”, diz o presidente da ANL.

No Congresso Nacional. Alexandre Martins Fontes diz que sem a aprovação do PL que estabelece um limite para os descontos em lançamentos as livrarias podem não resistir – Imagem: Redes sociais/ANL

Para que se compreenda de fato o significado da lei, é necessário dar um passo atrás e entender, minimamente, o funcionamento desse mercado altamente específico. Uma editora, ao lançar um livro, estabelece o preço de capa. Esse preço toma por base os custos de produção e de distribuição. Em média, as livrarias recebem das editoras um desconto de 50% sobre o preço de capa estabelecido e, com essa margem, pagam seus custos e investimentos.

Fontes observa que um dos equívocos comuns, quando se fala da Lei Cortez, é acreditar que a Amazon vende mais barato porque recebe um desconto maior das editoras. “O que a Amazon faz é abrir mão da margem de lucro, porque ela não ganha dinheiro com livro, e sim com a presença dos consumidores em seu ambiente.”

Outro ponto central do PL, nem sempre clarificado, é que a limitação de descontos atinge apenas os lançamentos. Para se ter uma ideia, a Martins Fontes da Avenida Paulista possui 210 mil títulos para pronta entrega; no Brasil, são lançados, anualmente, 13 mil títulos. Ou seja, a lei controlaria os descontos de 5% do que é ofertado.

E, por que, mesmo incidindo sobre uma parcela tão pequena de tudo que é comercializado, a lei se faz importante? “Se eu dependesse só das vendas regulares, não conseguiria fechar as contas. Dependo dos lançamentos”, diz Fernanda Diamant, sócia da Megafauna, localizada no Edifício Copan, no Centro de São Paulo. “O PL equilibraria o mercado. Essa primeira vida do livro é muito importante, e hoje a concorrência é muito desigual”, prossegue ela, que é sócia também da editora Fósforo.

Na Argentina, país que os brasileiros gostam de elogiar pela quantidade­ de livrarias de bairro que ostenta, a lei do desconto máximo de 10% estende-se para todo e qualquer título de um catálogo. A França, em 2014, proibiu o frete grátis e limitou os descontos a serem oferecidos pela Amazon a 5% – limite imposto às livrarias desde 198l.

Enquanto o PL nº 49 aguarda sua vez de ser novamente analisado no Congresso, os livreiros vão criando quase que uma nova identidade para esse antigo negócio. “A livraria é o lugar da descoberta. É um espaço de mediação, onde você encontra aquilo que não sabe que precisa”, diz Alessandra, da Bibla.

É também a ideia de mediação que dá norte a Pedro Gama, dono da Travessia, livraria instalada em um antigo casarão em Belém, no Pará. Gama é professor de Literatura e Língua Portuguesa, oferece um curso de redação na cidade e entende a livraria, aberta há um ano, como uma continuidade do seu trabalho.

“A concorrência é muito desigual”, afirma Fernanda Diamant, sobre os preços da Amazon

Gama recorre a uma expressão usada por Daniel Louzada, da tradicional Leonardo Da Vinci, no Rio, para definir o que é uma livraria hoje: “Uma zona livre do algoritmo”. “Uma livraria de rua não reproduz o market place. Ela é um lugar alternativo à política de dados e ligado à criação de comunidades”, diz Gama.

Para que sejam também comercialmente viáveis, as livrarias de rua têm incorporado a seus planos de negócios as já tradicionais cafeterias, uma extensa agenda de eventos, debates, cursos e palestras e, em alguns casos, a venda de outros objetos – como peças de design.

Será esse também o caso da Bibla. “Fizemos planilha, business plan e muita pesquisa”, faz questão de pontuar, em meio à conversa solta sobre a nova livraria, Isadora. “O restaurante, por exemplo, aumenta o tamanho da nossa operação, mas ajuda a equilibrar o negócio.”

As boas livrarias de rua, além disso, têm como marca uma organização própria das estantes e livreiros receptivos e qualificados. Fernanda Diamant, que inaugurará, em agosto, uma segunda unidade da Megafauna, no Teatro Cultura Artística, na região central da cidade, vê as livrarias, ainda, como um ponto de encontro – que o excesso de telas pode, paradoxalmente, tornar mais atraente.

“Talvez seja mais um wishful thinking do que uma constatação”, brinca, “mas acho que existe uma certa exaustão das redes sociais, acompanhada da percepção de que as telas podem ser tóxicas, que acaba dando uma nova vida aos livros.” •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que é uma livraria hoje?’

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