Cultura
O público ainda voltará?
No retorno pós-pandêmico, o Festival de Cannes teve parte do glamour ofuscado pelas crescentes inquietações sobre o destino do cinema de autor


Em abril de 2020, o cancelamento do Festival de Cannes a poucas semanas da abertura foi motivado pela explosão da epidemia de Covid-19. A suspensão do mais respeitado evento do cinema mundial, em termos artísticos e de mercado, soou, já então, como o prenúncio das mutações dos modos de consumo de audiovisual.
Dois anos depois, Cannes comemorou 75 anos e, finalmente, retomou seu calendário tradicional, em meados de maio. Mas as habituais imagens de glamour e as batalhas conceituais da crítica em torno dos filmes foram ofuscadas pelo temor crescente a respeito da saúde do cinema.
Os dados do mercado apontam que, mesmo após a reabertura plena das salas e a suspensão das restrições sanitárias, o formato convencional de exibição carrega sequelas. Um relatório do Centro Nacional do Cinema (CNC), que cuida do audiovisual na França, indicou uma queda de 34% na frequência das salas entre janeiro e abril de 2022, em comparação com o mesmo período de 2019.
O valor alto do ingresso, o incômodo com o uso de máscara e o pouco interesse despertado pelos filmes que chegaram às telas estão entre os motivos alegados pelo público, que reconhece alterações no consumo de produtos audiovisuais.
“Ter perdido o hábito de ir ao cinema” e “preferir consumir conteúdos audiovisuais em outros suportes” são algumas das respostas que apareceram com destaque no levantamento.
Outra pesquisa feita na França, com o público mais específico de cinemas de arte, apontou que, durante a pandemia, 55% dos entrevistados haviam assinado plataformas de streaming e 29% tinham reduzido o hábito de ir ao cinema depois da reabertura das salas. Um grupo menor, mas ainda expressivo, de 12%, não pretende mais ver filmes em salas.
O levantamento do CNC mostra ainda que a transição do padrão de consumo para o espaço doméstico, concentrada na oferta de conteúdos pelas plataformas, não tem os filmes como produtos predominantes. As séries dominam a maior faixa de interesse, com médias de 65% a 75% entre os conteúdos mais vistos, enquanto os filmes oscilam em torno de 20%.
Os dados acentuaram o pessimismo na França, que regula seu mercado com base no conceito de exceção cultural . A França é, há décadas, conhecida por estabelecer políticas e regras rígidas para a defesa da produção local e do cinema de autor, contra a uniformização do mercado audiovisual. As notícias que chegam de lá apontam, portanto, uma tendência global.
Ao que parece, as dificuldades enfrentadas pelo cinema de arte, perceptíveis antes da pandemia, se aceleraram rumo a um ponto de não retorno. O público mais velho, em certa medida o mais fiel aos filmes que ganham projeção em festivais, foi o primeiro a se isolar, por causa dos riscos sanitários. Com a reabertura das salas, os blockbusters ocuparam o mercado como tsunamis sucessivos, desestimulando quem, mesmo ocasionalmente, gostaria de ver algo diferente.
Também na França, meca da cinefilia, o interesse em séries supera de longe o interesse em filmes
“Cannes não é apenas um festival, é um acontecimento que aponta para onde o cinema está indo”, destacou o cineasta mexicano Afonso Cuarón, em entrevista durante a live do tapete vermelho da festa de premiação, no sábado 28.
A avaliação hiperbólica de Cuarón, comum nesse tipo de transmissão, foi logo desmentida pelo júri, cujas escolhas têm sabor de croissant requentado no micro-ondas.
O sueco Ruben Östlund, que havia vencido o prêmio principal em 2017, conquistou a segunda Palma de Ouro com Triângulo da Tristeza, enésima sátira sobre o cinismo contemporâneo.
O belga Lukas Dhont, reconhecido em 2017 com a Caméra d’Or, dividiu o Grand Prix com a francesa Claire Denis, habitué das diversas seleções de Cannes desde Chocolat (1988).
O prêmio de 75 anos de aniversário do festival também choveu no molhado, premiando mais uma narrativa dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne (Tori et Lokita) sobre o destino funesto de imigrantes refugiados na Europa. Fora do eixo europeu, o prêmio de direção para o sul-coreano Park Chan-wook reitera o que todo mundo sabe desde o Grande Prêmio dado ao seu Oldboy (2004).
Curiosamente, a observação de Cuarón, sobre Cannes ser um farol, encontrou eco nas bordas do festival, onde o anacronismo da distinção entre filmes e outros formatos foi, em parte, superado.
Ignoradas na cobertura oficial, as séries Esterno Notte, do italiano Marco Bellocchio, e Irma Vep, do francês Olivier Assayas, são manifestações eloquentes de cineastas que Cannes já ostentou como representantes da nobreza do cinema.
As cinco horas distribuídas entre as seis partes da série de Bellocchio reencontram o trauma nacional do sequestro e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro, tema que ele filmara de outra perspectiva em Bom Dia, Noite (2003).
Os oito episódios de Irma Vep são uma releitura expandida do longa homônimo de 1996, no qual Assayas revisitava a mitologia de Os Vampiros, seriado de 1915.
Esterno Notte será exibida, nos cinemas italianos, em duas partes e, na tevê, em versão seriada. Irma Vep entra no HBO Max no domingo 6.
Ambos os diretores parecem ter clareza do quanto as convenções do chamado cinema já foram quebradas. Com suas séries, testam possibilidades diferentes do papel de coadjuvante de luxo que o cinema vem desempenhando, limitando-se a emprestar nomes de prestígio a produções que logo desaparecem no fluxo incessante de renovação dos catálogos.
A exemplo das séries, que evoluíram e alcançaram a hegemonia no gosto do público, o cinema terá de se reinventar para não virar uma espécie de ópera. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O público ainda voltará?”
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