Cultura

O propósito de Lázaro Ramos

Engajado na luta antirracista, o ator não tem medido esforços para explicar e divulgar ‘Medida Provisória’

Há seis meses, Lázaro Ramos é um executivo na Amazon - Imagem: Pedro Napolinário
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Quando Medida Provisória ficou pronto, a pandemia não existia, o Black Lives Matter não tinha acon­tecido e o congolês Moïse Kabagambe não havia sido espancado até a morte no Rio. A primeira data apontada para o lançamento do filme dirigido pelo ator Lázaro Ramos era março de 2020. Após vários adia­mentos, o longa-metragem entra em cartaz nesta quinta-feira 14.

“O Daniel Filho engajou-se no projeto em 2014, e a base do roteiro é de 2015. Foram anos tentando viabilizar o filme e, nesse tempo, coisas tratadas como distópicas acabaram acontecendo”, diz Lázaro. “A gente falava de coisas que não gostaria que acontecessem. Era um alerta para a sociedade. No fim, várias dessas coisas aconteceram.”

Baseado em Namíbia, não!, peça de 2011, escrita por Aldri Anunciação, o filme conta a história de um Brasil do futuro, no qual um advogado processa o Estado pelo tempo de escravização.

O Estado reconhece que essa reparação tem de ser oferecida aos “cidadãos de melanina acentuada” – como tinham passado a ser identificados os negros –, mas, durante as discussões, decide que a “benesse” será mandá-los de volta para a África. “Mas ninguém é obrigado. Vai quem quer”, se apressa a esclarecer a assistente social vivida por Adriana Esteves.

A trama é narrada a partir de uma família formada por um advogado (Alfred Enoch),­ um jornalista (Seu Jorge) e uma médica (Taís Araújo). Há 77 negros em cena.

Na história do cinema brasileiro, esse é o filme com mais negros na elenco e na equipe

“É o filme da história do cinema brasileiro que tem mais negros à frente e atrás das câmeras. E eu nem sei se isso é para ser celebrado”, tem repetido o ator em entrevistas, um pouco dentro da lógica da água mole em pedra dura. Lázaro sabe ser uma voz importante na luta antirracista e aproveita o lançamento do filme para repisar temas nunca superados.

Na TV Globo, ele chegou a apresentar um relatório no qual fez apontamentos sobre a forma como a teledramaturgia tratava os negros. O ator notava a ausência de mulheres negras como protagonistas, a falta de plano de carreira para os profissionais e narrativas viciadas e planificadas.

Seu preparo foi definidor para que, em outubro do ano passado, assinasse um acordo, chamado overall deal, com a Amazon Studios. Desde então, é um artista com um cargo de executivo na plataforma, a quem cabe coordenar equipes, escrever, atuar e dirigir.

No exterior, Jordan Peele, o diretor de Corra! (2017), filme que marcou profundamente Lázaro Ramos, tem um acordo semelhante com a Amazon. Esse lugar parece ser muito condizente com aquilo que o ator buscava quando, quase dez anos atrás, resolveu transformar a peça Namíbia, não! em filme.

Ele admite, inclusive, que o memorável filme de Peele o fez livrar-se dos temores de sentar-se na cadeira de diretor. “Eu tinha um pouco de receio de estar indo para esse lugar também pelo ego. Mas entendi que não era isso”, afirma, para logo em seguida explicar melhor o seu propósito. “Eu reuni atores negros que têm uma opinião, figurantes que são rostos que dizem muito e trabalhei com profissionais negros em todos os departamentos. Várias das soluções cênicas do filme foram propostas por esse coletivo que, às vezes, em conversas inclusive banais, traziam perspectivas ou maneiras de contar a história.”

Luta. Enoch, Taís e Seu Jorge estão no elenco. No livro Diário do Diretor (Cobogó), estão registrados insights e dúvidas de Lázaro durante as filmagens – Imagem: Mariana Vianna

Lázaro diz que, desde o início, desejava fazer um filme que incorporasse uma grande variedade de temas e pautas que estão no dia a dia dos negros: luta pela vida, colorismo, frases equivocadas sobre a questão e negativa da existência do racismo. “Mas eu queria fazer um filme que se comunicasse para além do didático, num lugar de sensibilização. Por isso, usamos os recursos todos do entretenimento. Tem comédia, melodrama, aventura e termina com um drama que oferece uma nova saída para essa luta”, sintetiza.

O senso de luta, como era de se esperar no Brasil de Jair Bolsonaro, gerou reações. O filme e o ator têm sido atacados pela direita e Lázaro sentiu-se perseguido e agredido. “O primeiro boicote foi puxado por um membro do governo, que dizia que o filme tinha sido feito para falar mal do Messias”, diz, com a mesma calma na voz. “A gente escreveu o filme antes da eleição. A responsabilidade não é da ficção, é da vida real. O real é que imitou a ficção.”

No ano passado, a produção enfrentou dificuldades junto à Agência Nacional do Cinema, que o ator não tem dúvidas de terem sido criadas. “Trocamos a distribuidora e a assinatura para essa autorização levou um ano para ser dada. Para conseguir exibir o filme no Festival do Rio, tivemos de vir a público explicar a situação”, relata. “As notícias saíram na imprensa e numa sexta-feira, às 18h30, chegou uma assinatura permitindo a estreia.”

Nas últimas três semanas, a vida de Lázaro Ramos tem sido dar visibilidade ao projeto. Fez pré-estreias em São Paulo, Rio, Recife, Salvador e cumpriu maratonas de entrevistas. Ao falar da intensidade do lançamento, ele lembra do início da Retomada do cinema brasileiro, quando Carla Camurati percorreu o País, levando Carlota Joaquina (1995) debaixo do braço.

A direita acha que o filme retrata Jair Bolsonaro. “O real é que imitou a ficção”, afirma ele

“Nunca imaginei que o lançamento do Medida Provisória fosse assim. Já havia muito tempo, você fazia uma estreia no Rio, outra em São Paulo, e não tinha muito debate, não tinha muitas entrevistas”, diz. “Agora é como se a gente tivesse uma nova retomada. Junta o retorno a uma sala de cinema a uma pré-estreia que, no caso do nosso filme, traz muito a questão da representação positiva. Em algumas sessões, parece que houve uma marcha das pessoas para a presença nesse lugar.”

Lázaro Ramos, além de ser uma voz central na luta antirracista, é um rosto marcante do cinema brasileiro pós-retomada. O primeiro longa-metragem em que aparece creditado é Jenipapo (1995). Mas foi na primeira década dos anos 2000 que fez história em filmes como Madame Satã (2002), O Homem Que Copiava (2003), Cidade Baixa (2005) e Ó Paí, Ó (2007).

Inclusive, no duro monólogo de ­Roque, seu personagem de Ó Paí, Ó, para Boca (Wagner Moura), há um tanto de Medida Provisória. Assim como o há no programa Mister Brau, na TV Globo, ou na peça O Topo da Montanha, sobre Martin ­Luther King. “Felizmente, a luta antirracista sempre esteve presente na minha trajetória e em formatos diferentes”, afirma.

Casado com a atriz Taís Araújo, com quem tem dois filhos, Lázaro Ramos parece ter muita clareza do lugar que ocupa. Sabe-se celebridade e referência e diz que, por isso mesmo, vive em sobressalto. “Claro que quando vou dar entrevista, tenho tudo isso na minha cabeça. Sei que acabo falando também por gente que é silenciada o tempo todo”, diz, sem réstia de discurso. “E se isso é uma liberdade, é também uma prisão.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O propósito de Lázaro”

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