Cultura

O pintagol

O dia em que chegamos numa Brasília que nem existia ainda

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Quando chegamos na nova capital do Brasil, chovia muito. Os pingos grossos batiam na terra vermelha e desapareciam imediatamente, o que nos causou espanto por não formarem poça ou lama.

Descemos da Rural Willys e corremos pra nossa nova casa, uma casa de madeira, pintada de azul, localizada num acampamento no bairro do Cruzeiro. 

Fui o último a descer, com a gaiola na mão. Uma gaiola feita de taquaras de bambu, comprada no Mercado Central de Belo Horizonte. Dentro dela, meio jiló seco dependurado e já sem o miolo, um pedacinho de osso de baleia, água, alpiste e o pintagol. 

O pintagol é fruto do cruzamento de pintassilgo com canarinho belga. Na mudança pra Brasília, não queríamos deixar o passarinho pra trás e ele foi conosco.

Na casa de madeira, não foi difícil bater um prego na varanda e dependurar aquela gaiola. Num primeiro momento, o pintagol parece ter gostado dali, principalmente quando a chuva parou e veio o sol. Ele não parava de pular de um poleiro para o outro, ensaiando o seu canto. 

Estávamos ali acompanhando nosso pai, convocado para instalar o Serviço de Meteorologia no planalto central do País, onde nascia Brasília, uma cidade inteira em obras, pés de caju e redemoinhos de poeira. 

Minha mãe – um trator – colocou tudo em ordem naquela casa estranha em menos de uma hora. Era uma casa muito engraçada, pois a gente batia na parede e fazia barulho de caixote.

Minha mãe era a mineira mais desconfiada daquela aventura. Foi ela que contrariou o meu pai – Juscelino roxo – quando avistamos a cidade pela primeira vez. Ele desceu da Rural Willys, subiu numa pedra e bradou: Isto é Brasília! Minha mãe, que cochilava no banco de trás, olhou para um lado e para o outro e perguntou: Onde? O meu pai não gostou.

Na primeira noite, ela preparou pros filhos um macarrão com carne moída e molho de tomate, numa época em que nem sabíamos ainda que esse prato chamava-se macarrão à bolonhesa. Era um macarrão que vinha num pacote comprido e que ela comprou no Armazém Colombo, no bairro dos Funcionários. 

De sobremesa, minha mãe ofereceu um quadradinho de bananada Ojuara para cada um dos cinco filhos, aquele docinho que vinha embrulhado um a um. Nós ficamos muito felizes, ficamos um tempão ali lambendo aquele açúcar fino que revestia o doce.

O calor era tanto que nem pensamos em colocar a gaiola do pintagol pra dentro de casa. Ficou ali mesmo, dependurada na varanda. 

Levamos o passarinho pra Brasília porque tínhamos um carinho especial por ele. O pintagol era meio esquisito, aquele cruzamento de pintassilgo com canarinho belga produziu um bichinho parecido com um passarinho meio vira-lata.

Era estranho mas cantava que era uma beleza. De manhã, logo cedo, ele chegava a acordar os vizinhos do bairro do Carmo. Aquele passarinho, que não tinha nome, era conhecido na redondeza por seu canto e seu cruzamento.  

No dia seguinte, mal o céu havia clareado, acordamos com um piado sofrido do pintagol e uma barulheira danada na varanda daquela casa de madeira.

Voamos pra ver o que estava acontecendo. Só deu tempo de ver um carcará batendo asas e o pintassilgo agonizando em cima daquela folha do jornal Estado de Minas que forrava a gaiola.

As notícias, já velhas, tinham sido apagadas pelo sangue do bichinho que lutava desesperadamente pra ficar de pé. Achei que não tinha mais salvação.

Minha mãe correu lá dentro e buscou um estojo de primeiros socorros da Johnson. Pegou uma gaze, mercurocromo e Anaseptil. Abriu a portinha da gaiola, pegou e embrulhou o pintagol naquela gaze, que em segundos já estava empapada de sangue.

Eu só via o passarinho ofegante, sem forças pra nada, só mesmo para ficar quietinho nas mãos da minha mãe e piscando os olhos com dificuldade. Vimos que o carcará, aquela ave que tem o bico volteado que nem gavião, que avoa que nem avião, que pega, mata e come, havia arrancado um pedaço da asa do nosso pintagol. 

Fizemos um curativo e ele sobreviveu. Ficava – sem uma das suas asas – saltitando no chão da gaiola sem poder voar pro poleiro, só espiando. Mas sobreviveu e voltou até mesmo a cantar. Um canto mais triste e curto, mas cantava. 

Lembro da minha mãe – profética – naquele segundo dia nosso em Brasília, na varanda da nossa casa de madeira, naquele acampamento no Cruzeiro, enxugando os pingos de sangue no chão.   

Com o pano cheio de manchas vermelhas nas mãos, ela olhou pro céu como se procurasse o maldito carcará ou outra coisa parecida e soltou uma única frase.

– Essa Brasília não vai dar certo!

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