Cultura

O Photoshop afetou a percepção da realidade

Criado há 25 anos, programa se tornou sinônimo de manipulação da realidade – para o bem ou para o mal

Quem consome fotografias processadas das revistas de moda passa a acreditar que aquilo é verdade, o que aumenta risco de anorexia ou bulimia
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No início, o Photoshop era um programa de computador bem simples, que pouco mais fazia do que exibir imagens reticuladas nas telas monocromáticas de então. Vinte e cinco anos depois, ele está entre os mais desenvolvidos aplicativos para processamento digital de fotos do mundo.

E fez escola: até por ser originalmente caro, ele deu origem a todo um setor de programação, com bons sucessores a preços bem mais acessíveis ou até mesmo grátis.

Hoje, os programas de processamento de imagens são onipresentes: as fotos transformadas com sua ajuda estão nos computadores, smartphones, redes sociais, revistas de moda – e também no subconsciente humano.

As pessoas hoje estão tão acostumadas a imagens modificadas, filtradas e manipuladas, que fotografias não processadas até parecem estranhas. Fotos de personalidades em estado natural têm muitas vezes um efeito chocante – e são divulgadas como tal na internet.

Apresentar as grandes estrelas tais como são – com sua celulite ou pele oleosa e cheia de cravos – é tema frequente de debate. Mais recentemente, as “transgressoras” foram a cantora Beyoncé e a modelo Cindy Crawford.

Beyoncé foi criticada até por fãs por imperfeições expostas em fotos vazadas

Quer as reações sejam positivas, quer negativas, as fotos colocadas na rede inflamam mais uma vez a discussão sobre se essa manipulação do imaginário pessoal é válida, e quais seus efeitos. Pois atualmente a idealização das imagens na mídia é, definitivamente, antes a regra do que a exceção.

São incontáveis as possibilidades de modificar digitalmente a aparência de uma pessoa para aproximá-la de um certo ideal de beleza. Podem-se alongar pescoço e pernas, aumentar ou achatar bustos, acentuar as maçãs do rosto, tornar os cabelos mais densos, clarear ou bronzear a pele, à vontade.

Um vídeo da ONG Global Democracy permite visualizar bem parte das técnicas de manipulação utilizadas na indústria da moda. Nesse caso, a intenção é nobre, como parte de uma campanha para que seja exibido um aviso toda vez que corpos humanos forem modificados para fins de publicidade.

“A indústria da moda, como um todo, se comporta de um jeito altamente questionável”, critica o especialista em mídia Thomas Knieper: “Quando se alonga as pernas das estrelas, se afina sua cintura e faz desaparecer as rugas e outros defeitos, as pessoas tendem a admirá-las incontrolavelmente e a imitá-las.”

Estudos demonstram que quem consome regularmente as fotografias processadas das revistas de moda em algum ponto passa a acreditar que aquilo que vê seja a norma. Isso aumenta o risco de anomalias como anorexia ou bulimia.

“Essas fotos são capazes de causar depressão em gente que não se sente capaz de alcançar os padrões de beleza impostos pelas mídias. Elas percebem que não conseguem se aproximar de seu ideal nem com dietas e operações de beleza. Isso é perfeitamente normal, pois as imagens que estão vendo são anatomicamente impossíveis”, comenta Knieper.

A canadense Erin Treloar vivenciou tais mecanismos no próprio corpo. Na adolescência, ela sofria de grave distúrbio alimentar. “Com 17 anos, eu media 1,80 metro e pesava 40 quilos. Meus órgãos foram pouco a pouco deixando de funcionar, perdi meu cabelo e tive que ser internada no hospital.”

Ela está segura que seus distúrbios foram desencadeados e mantidos pelos ideais de beleza difundidos através dos meios de comunicação. “Quando se tem uma tendência ao perfeccionismo e se vê o que a mídia declara como perfeito e maravilhoso, também se quer alcançar esse ideal.”

Hoje com 30 anos, grávida e em perfeita saúde, Erin lançou na internet a petição #LessIsMore (“Menos é mais”). Sua meta é preservar outras jovens de experiências semelhantes às suas. Ela espera que as assinaturas coletadas levem revistas e outros veículos a apostarem menos na “photoshopagem”.

“Eu sei que a prática dos retoques não vai desaparecer de vez. E nem precisa”, observa. “Mas eu gostaria de conseguir que as revistas deixassem de retocar corpos e rostos. Quando se nota que há um cabelo no paletó da foto, é óbvio que se pode eliminá-lo digitalmente. Da mesma forma não há problema em dar sumiço a uma espinha no meio da testa. Mas parem de fazer quadris parecerem mais estreitos.”

Cada vez mais empresas reagem a tais apelos. Em sua recente campanha #AerieReal, a marca de roupas de baixo Aerie, da firma americana American Eagle Outfitters, usa exclusivamente fotos não manipuladas de suas modelos: nada foi posteriormente embelezado. A iniciativa parece estar tendo boa repercussão junto aos consumidores.

Porém, a indústria da moda não está sozinha em sua obsessão por uma imagem ideal do mundo. Um quinto das fotos submetidas ao conceituado concurso World Press Photo foi rejeitada devido a processamento digital intenso.

O especialista em mídia Thomas Knieper acredita que está urgentemente na hora de se estabelecerem certas diretrizes globais sobre a questão. As redações de notícias e firmas de comunicação de todo o mundo já têm, cada uma, suas regras próprias.

No geral, admite-se a intensificar as cores ou outras técnicas que realcem o motivo fotográfico central. É também ponto pacífico a eliminação de pequenos defeitos, como fiapos ou poeira. Inaceitável, por outro lado, é a manipulação do conteúdo de uma foto – por exemplo, adicionar a posteriori uma montanha ou apagar pessoas ou objetos.

São numerosos os exemplos de mau uso do Photoshop e companhia. Em 1994, o Time Magazine escureceu o rosto de O.J. Simpson nas fotos feitas pela polícia. Críticos detectaram na decisão uma forma sutil de racismo. Na época, o ex-jogador havia sido indiciado pelo assassinato da esposa, mas foi inocentado mais tarde.

Por vezes, basta modificar um detalhe mínimo para alterar todo o significado e mensagem de uma imagem. Um exemplo famoso é a foto de 2003 de dois soldados americanos no Iraque.

Um deles dá água de seu cantil a um soldado iraquiano que acaba de se render, enquanto o outro segura um fuzil na cabeça do prisioneiro. Dependendo do corte que se escolha, é possível apresentar os militares como ajuda ou como ameaça.

Knieper lembra que estudos científicos mostraram como os leitores só aceitam até certo ponto alterações posteriores de uma imagem, sobretudo se o valor documental delas está em primeiro plano.

“Como todo instrumento, pode-se usar o Photoshop para o bem ou para o mal”, declarou certa vez Thomas Knoll, o criador do programa de processamento de imagens, numa entrevista à TV. A regra certamente continuará valendo para o próximo quarto de século.

  • Autoria Anne-Sophie Brändlin / Augusto Valente

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