Cultura
O peso da história e a graça da vida
Tudo em Vão, do escritor alemão Walter Kempowski, é um romance a um só tempo épico e intimista sobre as existências marcadas pela guerra


A abertura de Tudo em Vão, do alemão Walter Kempowski, pode passar a ideia errônea de um bucólico romance russo. “Próximo a Mitkau, uma pequena cidade na Prússia Oriental, jazia a fazenda Georgenhof com seus velhos carvalhos, agora no inverno tal qual uma ilhota negra num mar branco”, lê-se.
Esse cenário, como se verá ao longo das páginas seguintes, será fundamental para a narrativa. Georgenhof, hoje localizada numa área que pertence à Polônia, é uma casa assombrada por fantasmas cuja existência remonta a 1945.
A mansão é habitada pela família Globig. O patriarca, Eberhard, está em uma missão na Itália. Sua mulher, Katharina, parece estar com a cabeça sempre em outro lugar, um pouco alienada do mundo que a cerca. O filho, Peter, de 11 anos, é curioso e esperto. Quem cuida das coisas práticas da casa e está atenta à vida de todos é uma tia que ali vive também.
O exército russo aproxima-se de Georgenhof. Deve chegar a qualquer momento. “O que demovia o Exército Vermelho de, finalmente, começar o ataque?”, pergunta-se uma personagem. Enquanto esperam, os moradores da propriedade recebem visitas diversas: de um economista liberal a uma violinista conservadora, até um judeu que passa ali a noite, arriscadamente escondido por Katharina.
A forma de narrar de Kempowski soa distante. É quase como se ele exercitasse um desapego das personagens, sem criar vínculos emocionais com elas. Essa opção faz com que, na superfície, tudo pareça frio. Mas, na verdade, a estratégia do autor é outra. De maneira cirúrgica, ele captura um mundo a ruir. Vemos o trator da História passando sobre as pessoas sem que elas tenham consciência disso.
Embora o livro não seja autobiográfico, há muito da própria biografia do autor nele. Kempowski tinha 15 anos quando, em 1944, viu chegarem à sua cidade natal, Rostock, refugiados da Prússia. Alguns anos mais tarde, durante a Guerra Fria, ele seria acusado de espionagem pela União Soviética, e passaria oito anos em uma prisão em Bautzen, cidade ao leste da Alemanha que, depois do domínio nazista, passou para a polícia secreta soviética.
TUDO EM VÃO. Walter Kempowski. Tradução: Tito Lívio Cruz Romão. (DBA, 440 págs., 89,90 reais)
Nesse período, conheceu pessoas e histórias que se tornariam partes de um projeto impressionante: uma série em dez volumes, que ele chamava de diários coletivos dos anos de guerra, publicada entre 1993 e 2005. Esse conjunto é composto de testemunhos escritos em forma de cartas, diários etc.
Essas vozes, certamente, ecoam em Tudo em Vão, obra épica e, ao mesmo tempo intimista, na qual ele procura investigar os efeitos de uma guerra sobre as vidas das pessoas comuns. A narrativa, conduzida primordialmente em um discurso indireto livre, transita entre a mente das personagens e o mundo em que elas vivem.
Kempowski, embora carregue o peso da história, não é um escritor sisudo. Em sua prosa, o humor e a ironia contrabalanceiam a gravidade do momento. Heil Hitler, por exemplo, torna-se quase um mantra, repetido tantas vezes, e de forma tão aleatória, que sublinha o ridículo e o perigo dos cultos a personalidades.
A bem cuidada edição brasileira traz notas assinadas pelo tradutor Tito Lívio Cruz Romão que ajudam a compreender melhor não apenas o contexto histórico da trama, mas as referências do autor, em especial à música e ao cinema.
Tudo em Vão é considerada a grande obra de Kempowski, nascido em 1929, em uma família abastada, e morto em 2007, aos 78 anos, de câncer. Ele vivia em Rotemburgo, na Alemanha.
A revista New Yorker, por exemplo, definiu Tudo em Vão como uma obra-prima. Para o Guardian, trata-se de um livro marcado pela ideia de perdão e de compaixão, “que olha além das fúteis divisões que as pessoas fazem entre elas mesmas”.
Trata-se, enfim, de um romance histórico escrito sob a vantagem de estar décadas distante do momento retratado. A pátina do tempo parece ajudar o autor a ver com mais lucidez o passado, enquadrando-o também sob o prisma do presente, ajudando assim a iluminá-lo. •
VITRINE
Por Ana paula sousa
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PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O peso da história e a graça da vida”
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