Cultura
O pesadelo do sonho americano
Filho de Jesus, publicado em 1992 e agora editado no Brasil, possibilita a redescoberta de obra de Denis Johnson


O lançamento de Filho de Jesus, de Denis Johnson (1949-2017), no Brasil é um fato a se comemorar. Embora não tenha recebido todo o reconhecimento que merecia, Johnson foi responsável por uma das produções mais interessantes dos Estados Unidos nas décadas de 1980 e 1990.
O livro agora publicado pela Todavia foi originalmente lançado nos EUA em 1992, e, segundo o próprio autor, tem influência da coletânea de contos O Exército da Cavalaria, do russo Isaac Bábel. Apesar de retratar o típico universo junkie de então, mostra-se bastante atual.
Embora seja habitualmente definido como uma coletânea de contos, Filho de Jesus pode também ser tomado por um romance com capítulos independentes. Mas tanto faz: o efeito devastador das histórias protagonizadas e narradas por um sujeito chamado Bostalhão vai ser o mesmo.
Escrevendo pouco depois da loucura yuppie dos anos de 1980, o autor não olha para o ambiente urbano e decadente que interessou a vários de seus pares – caso de Brett Easton Ellis, em Psicopata Americano. Johnson leva sua narrativa para o coração do país, no ambiente rural, longe do glamour de néon de Nova York.
As personagens, a começar pelo protagonista, são pessoas cujas vidas estão estagnadas, perdidas no tempo. O futuro apresenta-se tão sem possibilidades que elas nem cogitam de olhar para ele.
Johnson traz uma visão cruel, mas realista, do famoso sonho americano, baseado na crença de que todos têm chances iguais e podem, portanto, ascender social, cultural e economicamente.
Bostalhão e as pessoas que cruzam seu caminho certamente não viram isso acontecer com elas, mas, talvez por acreditarem – mesmo que inconscientemente – nessa possibilidade, se culpem por seus fracassos.
FILHO DE JESUS. Denis Johnson. Tradução: Ana Guadalupe. Todavia (112 págs., 59,90 reais)
Em um mundo de horrores – há, por exemplo, a descrição de um homem ferido, com uma faca enterrada no olho –, Johnson encontra espaço para a poesia, sem que isso jamais signifique a romantização da condição degradada das personagens.
Em um dos momentos mais bonitos do livro, ele escreve: “Astros e estrelas do cinema andavam de bicicleta ao lado de um rio, rindo com bocas gigantescas e lindas. Se alguém tinha vindo ver esse filme, todo mundo tinha ido embora quando o tempo virou. Não tinha sobrado carro nenhum, nem mesmo um carro quebrado da semana anterior, nem um que abandonaram aqui por falta de combustível. Em alguns minutos, no meio de uma quadrilha rodopiante, a tela ficou preta, o verão cinematográfico acabou, a neve escureceu, a única coisa que sobrou foi a minha respiração”.
Esse trecho é bastante representativo das ideias abrigadas dentro do livro. Se, na tela gigante de um drive-in abandonado, os astros e as estrelas ainda podem andar de bicicleta livremente, em um mundo idílico, para os demais, a tela está escura. Para Bostalhão, nem o sonho cinematográfico é mais possível. A ele o que resta é apenas sobreviver.
Essa dicotomia entre a crueza e a beleza, sempre marcada por um quê de melancolia, é uma característica importante de toda a obra do escritor. Em Árvore de Fumaça (Companhia das Letras, 2008) ele mostra os horrores da guerra, por meio de um agente treinado para fazer terrorismo psicológico contra os vietcongues. Já em Sonhos de Trem (Companhia das Letras, 2012) acompanha a trajetória de um operário de uma companhia ferroviária desde a orfandade, na infância, até sua morte.
A chegada de Filho de Jesus reabre o caminho para a redescoberta de uma obra ímpar e discreta. •
Vitrine
Por Ana Paula Sousa
Apesar de até aqui inédito no Brasil, Hernan Diaz é um autor elogiado e premiado. Confiança (Intrínseca, 416 págs., 89,90 reais) ficou entre os finalistas do Booker e será transformado em série pela HBO. A intrigante trama coloca em xeque a ideia de sucesso no capitalismo.
Autora-farol de muitas mulheres negras, Maryse Condé, nascida em Guadalupe, tem uma nova obra publicada. O Evangelho do Novo Mundo (Rosa dos Tempos, 294 págs., 64,90 reais) se apresenta como uma “parábola contemporânea” que sonha um outro mundo.
Estreia de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem ganha uma linda edição, com manuscritos e ensaios inéditos (Rocco, 304 págs., 149,90 reais). Os textos refletem sobre a obra e olham para Joana, célebre protagonista da literatura brasileira, a partir do presente.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O pesadelo do sonho americano”
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