Cultura
O passado segue à espreita
Lídia Jorge, que viveu na África, ficcionaliza a história portuguesa
Em Misericórdia, recém-lançado no Brasil, a narradora, Dona Alberti, que mora num lar para idosos, diz que sua filha, escritora, é “uma espiã na história”. O fato de o romance ser, em alguma medida, inspirado na mãe da autora, Lídia Jorge, faz pensar que essa fala talvez diga respeito a ela própria.
“Me vejo dessa maneira, sim”, admite a escritora de 79 anos, um dos principais nomes da literatura portuguesa contemporânea. “Me lembro, jovem, de ver, antes da Revolução dos Cravos, a resistência (contra o regime salazarista) dos universitários. Eu era uma testemunha, via a história andar, mas não tinha uma voz pública para defender a mudança.”
A fala doce e tranquila de Lídia faz lembrar a cadência de sua escrita. Mas, embora sua forma seja a da delicadeza, sua literatura é socialmente engajada. Seus personagens são, sobretudo, os esquecidos pela sociedade.
A autora diz colocar-se, em livros como Misericórdia e Diante da Manta do Soldado, “ombro a ombro” com os marginalizados. Ao dar voz aos excluídos, ela expõe também um Portugal que acumula feridas históricas e, mesmo tentando colocar-se como um país moderno, ainda se vê obrigado a olhar para o passado colonial.
Esse passado é reconstituído, por exemplo, em A Costa dos Murmúrios, de 1988, e adaptado para o cinema em 2004. O romance aborda a guerra colonial em Moçambique, e é protagonizado por uma mulher que se coloca contra o conflito.
DIANTE DA MANTA DO SOLDADO
Lídia Jorge.
Autêntica Contemporânea (200 págs., 64,90 reais)
O livro será publicado no Brasil em 2026, pela Autêntica, que hoje edita Lídia Jorge. Antes, alguns de seus romances e uma coletânea de contos foram publicados por diferentes editoras, mas boa parte disso está fora de catálogo.
Lídia morou em Moçambique e Angola no período em que foi casada com um oficial da Força Aérea Portuguesa. A experiência a fez perceber que a realidade sobre os conflitos coloniais era bem diferente daquela narrada em jornais, por exemplo.
“Era uma guerra desonesta e imunda. Muitos militares sabiam que era uma guerra errada”, afirma. “Era uma experiência antropológica estar com as pessoas de lá, que eram como nós, mas eram desprezadas e odiadas pelos europeus.”
Viver nos dois países africanos foi tão marcante que Lídia se sente como “se lá tivesse se tornado mulher e, de mulher, escritora”. Seu filho nasceu em Moçambique num parto feito ao lado de “irmãs africanas”. A escritora diz que, naquele momento, já sabia que levaria essa experiência para a vida. Não se sentia, porém, pronta para escrever sobre aquilo.
MISERICÓRDIA
Lídia Jorge. Autêntica Contemporânea
(384 págs., 79,80 reais)
“Eu tinha publicado três romances quando esses anos na África se amalgamaram em mim, e eu senti que o próximo livro poderia ser sobre eles”, diz. “Levei dez anos para entender o que vivi lá.” Esse entendimento nunca mais se apartou de sua literatura. Em Misericórdia, por exemplo, o lar onde vive a protagonista tem, em seu corpo de cuidadores, refugiados de diversos países.
Ao falar sobre o tema da imigração, Lídia reflete: “O povo português é marcado pela aventura, pelo desejo de procurar a vida em outro lugar. Por isso acho estranho o fato de as pessoas portuguesas não quererem imigrantes aqui. Portugal parece querer imitar os Estados Unidos”.
Seu projeto literário é, em alguma medida, entender de que forma o movimento da História toca a vida das personagens. A narradora de Diante da Manta do Soldado, por exemplo, tenta resgatar o passado da família a partir das histórias que lhe foram contadas. Ela busca, em especial, quem foi seu pai, um homem que partiu quando ela ainda era criança e que paira como um fantasma sobre sua casa.
Olhar para o passado, diz Lídia, é o que nos pode ajudar a nos preparar para o futuro. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa

Organizado pela nigeriana Oyèrónke Oyěwùmí, Estudos Africanos de Gênero (WMF Martins Fontes, 699 págs., 79,90 reais), ganhou versão em português. A obra reúne autores de diferentes origens étnicas e idiomas e integra a Plataforma Ancestralidades, do Itaú Cultural.

O curador Moacir dos Anjos, pensador original do campo das artes visuais, reúne novos textos num livro cujo título explica seu propósito: Ataque à Indiferença: Ensaios Sobre Arte e Política (Cobogó, 320 págs., 96 reais). Neles, Moacir desafia consensos e captura movimentos da sociedade.

A narradora que se apresenta no início de Ferida (Fósforo, 248 págs., 89,90 reais) é uma mulher a carregar as cinzas da mãe e a lidar com um entorno pouco amistoso. Ela é também Oksana Vassiákina, elogiada autora russa que, neste livro, relata a experiência com o luto pela morte da mãe.
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O passado segue à espreita’
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