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O pacto da subalternidade

Ao narrar a intimidade vivida no quartinho de empregada, Eliana Alves Cruz alcança uma repercussão inédita

Foto: Chico Cerchiaro
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“Esse livro tem sido uma revolução para mim”, diz, um mês depois do lançamento de Solitária, Eliana Alves Cruz. Na véspera da entrevista, a escritora tinha organizado, na Feira Afro Abaetê, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, um almoço literário.

O evento, realizado na rua, reuniu, para uma roda de conversa, a deputada federal Benedita da Silva e as vereadoras Tainá de Paula e Thaís Ferreira, do Rio de Janeiro, e Verônica Lima, de Niterói – todas negras e de partidos de esquerda. “Foi muito forte”, diz Eliana. “Todas elas têm essa história de mães, avós ou tias que foram empregadas domésticas. Eu imaginava que esse livro ia mexer com algumas coisas, mas não tanto assim.”

O Brasil, de acordo com um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) poucos meses após o início da pandemia, possui 6 milhões de empregadas domésticas. Estima-se que 70% delas não possuam carteira assinada e 80% sejam negras. ­Solitária conta a história de umas delas: Eunice. O romance tem, além de Eunice, outras duas narradoras: Mabel, sua filha, e as paredes do quarto de empregada.

“O que senti sentada na cama estreita daquele quarto ainda não tem nome”, narra, na primeira parte do livro, Mabel. Eliana nos diz assim, de saída, que não é possível nominar o que é o quartinho de empregada. Mas é possível explicá-lo. E explicitá-lo.

Nos livros anteriores, Água de Barrela (2015), O Crime do Cais do Valongo (2018) e Nada Digo de Ti Que em Ti Não Veja (2020), Eliana localizou suas histórias no passado escravocrata e colonialista brasileiro. Solitária, o primeiro lançado por uma grande editora, a Companhia das Letras, se passa no presente.

A história tem como cenário o apartamento de seu Tiago e dona Lúcia, na cobertura do edifício Golden Plate, localizado na área nobre da alguma grande cidade. Seu agudo retrato da subalternidade e dos silêncios gerados por esse pacto coletivo brasileiro, vendeu, segundo ela, 2 mil exemplares em um mês. E os convites para entrevistas e eventos não param.

“A Conceição Evaristo um dia me perguntou: ‘Você já começou a dar consulta?’. Porque escritora negra não dá autógrafo, dá consulta”, diz, ao telefone, com sua risada solta. “Tenho recebido retornos impactantes. Todo mundo quer me contar alguma história. Uma leitora me disse: ‘Fui empregada desde os 12 anos e hoje faço mestrado’. Outras dizem que são as filhas das empregadas.”

Solitária narra a intimidade das vidas confinadas aos espaços que ficam no fundo das casas das classes média alta e alta – a cozinha, a área de serviço, o quarto e o banheiro de empregada. As paredes têm ouvidos, sabemos desde sempre, e, para Eliana, têm boca também.

SOLITÁRIA.Eliana Alves Cruz. Companhia das Letras (168 págs., 54,90 reais)

“Eu queria dar voz à arquitetura”, explica. “Só recentemente as plantas dos apartamentos, no Brasil, deixaram de prever o quarto de empregada. E as casas dos zeladores continuam existindo ao lado das garagens. O zelador passa a vida respirando CO2. ‘Mas não paga aluguel’, dizem.”

O zelador e seus filhos são, assim como os cômodos, personagens centrais do livro. Eles surgem na narrativa ainda crianças, assim como Mabel e Irene, a babá de 13 anos que vive uma tragédia. “Eu quis iniciar pela Mabel, para começar pela infância perdida, ou, pelo menos, negligenciada, dos filhos das empregadas”, diz. “São crianças que não podem ser crianças dentro das casas dos patrões das mães.”

Eliana, que é jornalista e trabalhou por 20 anos como assessora de imprensa da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, carregava a semente de ­Solitária desde Água de Barrela. Mas foi na pandemia que ela germinou.

“A primeira morte por Covid-19 no País foi de uma empregada doméstica. E quantas imagens não vimos de famosas confinadas com suas babás?’, começa a listar. O caso do menino Miguel, de 5 anos, que morreu ao cair de um prédio de luxo, no Recife, no fim de 2020, não é mencionado na entrevista, mas está presente no universo ficcional de Eliana.

E esse universo, embora ancorado na realidade atual, ecoa os universos literários de Conceição Evaristo e Carolina de Jesus (1914-1977), mencionados de forma literal na trama. “Elas pararam a leitura do dia nesse ponto porque Eunice molhou as páginas daquele livro, Quarto de Despejo, com seu pranto”, lemos.

Quarto de Despejo, de Carolina, dá, inclusive, nome a um dos capítulos mais fortes de Solitária. Nele, Eunice se dá conta de que o destino da filha repete mais o seu do que gostaria de supor. A gravidez na adolescência, o pai que gasta o pouco que ganha com bebida e se torna violento e o sonho da faculdade de Medicina são alguns dos elementos-referência de classe e raça que Eliana incorpora a seus personagens.

Mas, como ela própria diz, na ficção, ao contrário do que acontece na realidade, é possível levar a história para onde se deseja. E Eliana busca a libertação dessas pessoas cujos destinos são traçados pela herança escravocrata e que estiveram condenadas, por décadas, à imutabilidade entre “os que serviam e os que eram servidos”.

Em sua narrativa, cabe às novas gerações irromper na casa-grande para escancarar o desconforto, a sensação de não pertencimento e as violências praticadas, muitas vezes, sob o verniz da generosidade. “No Brasil de hoje, nós estamos estacionados na dor”, diz. “Mas, na literatura, você pode escrever o final que desejaria para aquela pessoa.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O pacto da subalternidade”

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