Cultura
O mundo contido em um diário
A historiadora francesa Arlette Farge apresenta, com sutileza e espírito crítico, conta a vivência de uma mulher que, no século XVIII, rebelou-se contra seu destino


Arlette Farge é uma historiadora francesa especializada em um trabalho de arquivo peculiar e instigante. Ela vasculha pastas do passado em busca de histórias mínimas, relatos de “vidas minúsculas”. Um de seus livros, A Revolta da Senhora Montjean: a História de Uma Heroína Singular às Vésperas da Revolução Francesa, de 2016, acaba de ser lançado no Brasil, e é difícil escapar de definições como “brilhante” e “espetacular” diante da narrativa que Farge apresenta.
Trata-se de um diário manuscrito que cobre nove meses entre 1774 e 1775, encontrado por Farge nos Arquivos Nacionais de Paris. Quem toma a palavra é o Senhor Montjean, alfaiate estabelecido em Paris que se vê diante de um problema: depois de uma estada de um mês no campo, na casa do pai, sua esposa, a senhora Montjean, se recusa a “trabalhar na butique e a honrar os pedidos”, decidindo que suas ocupações, a partir de então, “são passear, cuidar da aparência e ter relações mais ou menos amorosas, na companhia de homens e mulheres de status social mais alto que o seu”.
Farge contempla, de forma habilidosa, tanto a descrição do artefato quanto a análise de seu conteúdo. O diário de Montjean é um caderno feito de “grandes folhas”, com 64 páginas escritas “com uma letra apressada”, contendo ainda “algumas folhas soltas” ao final, datadas de janeiro de 1776. O estilo é confuso, com ortografia incorreta e quase sem pontuação, algo típico das pessoas de “pouca cultura” da época. Farge aponta, porém, o “milagre” da iniciativa de escrita de um artesão “numa sociedade em que dois terços das pessoas não sabem ler nem escrever”.
A palavra de ordem para Farge é “ambivalência”: Montjean oscila dentro do próprio idioma, manipulando a linguagem de forma “incompetente” e, ao mesmo tempo, fascinante; o relato é sobre a esposa, mas a perspectiva é do marido; o alfaiate está à beira da falência e da desonra, por conta das atividades da mulher, mas se recusa a tomar medidas drásticas, como o “internamento em um convento” sugerido pelo sogro. O diário é, por fim, a figura do inacabamento por excelência. Nem Farge nem o leitor têm acesso à conclusão da história.
A REVOLTA DA SENHORA MONTJEAN. Arlette Farge. Bazar do Tempo (160 págs., 58 reais)
Segundo Farge, o autor “revela-se no papel como uma avalanche”, apresentando, aos poucos, eventos que ele próprio está longe de compreender. O que pode ter dado errado? Por que a senhora Montjean abandona aquilo que foi conquistado de forma tão difícil ao longo dos anos? O que fazer para remediar a situação?
Existe também uma poderosa questão de fundo construída a partir do esforço da autora de “interpretar” e “contextualizar” o diário: o desejo impossível da senhora Montjean de ultrapassar sua classe social e ascender em direção às práticas e bens da aristocracia e da alta burguesia. O alfaiate sofre com a “busca incessante da esposa por outro futuro, longe das limitações e do tédio do trabalho”.
O marido ama a esposa, mas se ressente com a “revolta”. Os “infinitos detalhes” apresentados por Montjean em seu diário, comenta Farge, mostram “a fratura imediata entre categorias sociais que nunca poderão se misturar totalmente”. De certa forma, a senhora Montjean é vítima de um sistema que oferece ininterruptamente promessas vazias.
Evocando rapidamente Madame Bovary, de Flaubert, Farge aponta no diário “um tom trágico”, uma dimensão de “inevitabilidade”. A senhora Montjean tenta “sair do seu invólucro, cheio de tédio e desejo, para se tornar borboleta”, mas as classes altas “nunca oferecem a ninguém suas borboletas coloridas; a porta está fechada para todos os que desejam entrar no jardim das delícias”. Não sabendo que era impossível, a senhora Montjean foi lá e fez – ou, ao menos, tentou. •
VITRINE
Por Ana paula sousa
O drama da narradora de O Gato Perdido (Todavia, 80 págs., 49,90 reais) está centrado, na aparência, no desaparecimento de seu gato. Mas Mary Gaitskil não deixa de nos lembrar, durante sua breve e tocante narrativa, que, sob as emoções verdadeiras, escondem-se emoções falsas.
O tempo relegou Isolados em Um Território em Guerra na América do Sul (Ateliê Editorial, 328 págs., 94 reais), de 1947, ao esquecimento. Graças a esta nova edição, as histórias sobre a repressão aos japoneses que migraram para o Brasil no século XX podem voltar a ser ouvidas.
Não digam que a escrita faliu, afirma Edimilson de Almeida Pereira em Acidente, um dos poemas contidos em Melro (Editora 34, 112 págs., 46 reais), pontuando, em um verso, o que o livro demonstra. Sua poesia atravessa e é atravessada pela contemporaneidade brasileira.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O mundo contido em um diário “
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