Cultura
O menestrel satírico
Além de ironizar a política e os costumes, o músico e humorista, morto aos 84 anos, compôs muita canção de amor


Durante a ditadura, Juca Chaves estava em um programa de tevê quando o apresentador perguntou o que achava do regime militar. “Eu não acho nada. Um amigo meu foi achar e nunca mais acharam ele”, respondeu, com seu humor característico.
Juca, que morreu no sábado 25, em Salvador, aos 84 anos, devido a problemas respiratórios, entrou para o imaginário popular como a figura engraçada que usou a sátira para falar das mazelas e costumes do País e que cantava modinhas ao violão. Na década de 1970, seus discos de piadas, com historietas maliciosas intercaladas a canções, fizeram sucesso. Seu talento ia, porém, muito além da capacidade de fazer rir.
“Sou um compositor bom, músico médio e cantor fraco. Bom humorista por acaso e faço um espetáculo bom. Um menestrel”, costumava dizer o músico, compositor, cantor e comediante
Jurandyr Czaczkes Chaves nasceu no Rio de Janeiro em 1938, fruto da união de um judeu austríaco – que abrasileirou o sobrenome assim que aqui chegou – e de uma judia lituana, mas mudou-se com a família para São Paulo ainda na infância. Aos 7 anos, iniciou os estudos de violão.
A facilidade com o instrumento fez com que, aos 16 anos, passasse a ter aulas com o maestro Guerra Peixe, nome de proa da música clássica brasileira que, certamente, influenciou seu gosto musical. “Os russos são os meus preferidos: Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov e Mussorgsky não saíam da minha vitrola”, afirmou, em sua autobiografia. Não é difícil, inclusive, identificar algo da dramaticidade russa em Águas de Saquarema, sua primeira composição de destaque, gravada em 1957 pela cantora Lenny Eversong.
A união entre erudito e popular o constituiu. Outro de seus mestres, o maestro Eleazar de Carvalho, incutiu nele o gosto pelo estudo sistemático. No campo da música popular, algumas de suas maiores inspirações foram Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga e Lamartine Babo.
Não era raro Juca criar uma balada romântica e revesti-la com arranjos barrocos, como se pode perceber em A Cúmplice, canção do disco Juca Bom de Câmara (1977) na qual um singelo acompanhamento de cravo abrilhanta os versos – Eu quero uma mulher/ Que seja diferente/ De todas que eu já tive/ Todas tão iguais/ Que seja minha amiga, amante confidente/ A cúmplice de tudo que eu fizer a mais.
“Sou um compositor bom, músico médio e cantor fraco. Bom humorista por acaso e faço um espetáculo bom”
Ao mesmo tempo que flertarva com a música do século XVI, como fez em Pavana para Per La Contessa Alessandra (1977), adorava fazer graça. Sono Cornuto, Mas Sono Felice, faixa de Senza Complessi (1970), gravado durante o autoexílio na Itália, rendeu ao artista divertidas saudações de cornuto! quando andava pela rua.
Juca especializou-se na modinha e assumiu a persona do trovador. Mas o fez à sua maneira: adotou o estilo para fazer sátira política. A primeira sátira a torná-lo conhecido foi Presidente Bossa Nova (1957), que ironizava a modernidade de Juscelino Kubitschek. Voar, voar pra bem distante/ Até Versalhes onde duas mineirinhas, valsinhas/ Dançam como debutante, interessante/ Mandar parente a jato pro dentista/ Almoçar com tenista campeão, cantava.
Juca não tinha preferência política. Achincalhava todos, sem dó. Presidente Bossa Nova foi apenas uma das 84 canções de seu repertório a ter trechos censurados. Outras 41 foram proibidas.
O País tampouco escapava de seus versos. O samba Caixinha, Obrigado (1960) rimava a corrupção. Brasil Já Vai à Guerra, do mesmo ano, fazia troça da compra do porta-aviões Minas Gerais pela Marinha.
Dona Maria Tereza (1962) usava o nome da então primeira-dama para falar da precária situação econômica do povo e do medo do comunismo: Dona Maria Tereza/ Assim o Brasil vai pra trás/ Quem deve falar, fala pouco/ Lacerda já fala demais/ Enquanto feijão dá sumiço/ E o dólar se perde de vista/ O Globo diz que tudo isso/ É culpa de comunista.
Vinicius de Moraes apelidou-o, por essa e outras, de menestrel maldito. No período mais duro da ditadura, sapateou em cima do ufanismo de País Tropical, canção de Jorge Ben Jor eternizada na voz de Wilson Simonal. Alô Brasil, alô Simonal/ Moro e namoro em Paris Tropical/ Tereza é empregadinha, eu sou seu patrão/ Vendi meu Fusca e o meu violão/ Tenho um Jaguar, só ouço Bach/ Eu como estrogonofe em lugar de feijão, dizia, em Paris Tropical (1972).
Mas a sátira não foi seu único estilo. Já no disco de estreia, de 1960, pela gravadora RGE – para a qual fora recomendado pela cantora Aracy de Almeida –, dividia-se entre provocações e canções românticas.
Para cada Presidente Bossa Nova e Nasal Sensual havia uma melodia singela, como Menina, Aquarela dos Sonhos e Por Quem Sonha Ana Maria. Nos anos 1970, ele passou a inserir piadas em suas apresentações musicais.
Artista completo, Juca também fez sempre questão de se posicionar ao lado dos colegas em demandas mais ou menos específicas. Participou de movimentos contra a censura e lutou, por exemplo, pela numeração dos discos, a fim de impedir que os artistas fossem lesados pelas gravadoras. Sua gravadora, a Sdruws, era por ele definida como a primeira realmente socialista. “O empregado rouba o patrão e vice-versa”, brincava.
Juca Chaves foi casado por quase meio século com Yara, uma modelo e dançarina que se tornou a musa de todas as suas canções de amor. O casal tinha duas filhas, Maria Clara e Maria Moreno. •
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O menestrel satírico’
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