Cultura
O Lennon ativista
Power to the People recupera a fase em que o ex-Beatle e Yoko Ono flertaram com a esquerda radical norte-americana


O período de maior militância política do ex-beatle John Lennon é o foco do projeto Power to the People, que chegou às lojas e plataformas de streaming como parte das comemorações do que seria seu 85º aniversário. O lançamento é o primeiro de uma série de novidades que sairão do inesgotável baú dos Beatles antes do Natal (ler texto à pág. 50).
Em caixa que inclui nove CDs, três Blu-rays, livro e uma memorabilia com pôster, cartões-postais, adesivos e réplicas de ingressos, Power to the People é uma crônica do período de 1971 e 1972, quando Lennon e Yoko Ono flertaram com a nova esquerda radical norte-americana. De mudança de Londres para Nova York, procurando fugir da pressão provocada pelo fim dos Beatles, o casal deixou para trás o sonho utópico de Imagine e abraçou de vez a contracultura.
Ativistas radicais como John Sinclair, Jerry Rubin, Abbie Hoffman, os Panteras Negras e Angela Davis passaram a fazer parte do círculo mais íntimo do casal, que ia a passeatas, manifestações e participava de shows beneficentes.
O álbum gravado pela dupla em 1972, Some Time in New York City, alicerce de Power to the People, abordava temas como busca da paz, justiça social e racial, a opressão do Estado contra a esquerda, do Reino Unido contra a Irlanda do Norte e da sociedade contra a mulher. Agora, ele é apresentado de forma “reimaginada”, como se lê no texto de apresentação – o que também pode ser entendido como um eufemismo para autocensura.
O projeto destaca-se por reunir, em um só lugar, todo o material, quase todo inédito, de um período específico da vida do casal
No disco original, a arte da capa imitava um jornal com as letras das músicas ocupando o lugar das notícias e ilustrações inusitadas e controversas. A letra de We’re All Water, por exemplo, cantada por Yoko, dizia que as pessoas são as mesmas em todos os lugares, apesar de aparentes diferenças, e foi ilustrada por uma montagem que mostrava os então presidentes dos EUA e da China, Richard Nixon e Mao Tsé-tung, dançando juntos e pelados.
Controvérsia muito maior foi provocada pela música de trabalho do disco, Woman Is the Nigger of the World, algo como “a mulher é o escravo do mundo”, que usava a palavra nigger, altamente ofensiva para os negros, para descrever a opressão feminina.
Cunhada por Yoko em uma entrevista, a frase virou manchete da revista Nova em março de 1969. Em 1972, Lennon usou-a como título da canção polêmica em que comparava a opressão racial à opressão de gênero. As rádios não tocaram, a gravadora Apple recusou-se a promovê-la no Reino Unido e a música e o correspondente álbum obtiveram pouca repercussão.
Na caixa, contudo, enquanto a foto de Nixon e Mao aparece na forma de um adesivo inofensivo, Woman Is the Nigger of The World foi totalmente limada do conjunto de123 faixas, das quais 90 inéditas. A opção causou espanto entre fãs e críticos.
Sean Ono Lennon, filho de John e Yoko, supervisor do projeto, disse que a exclusão não é censura, mas reflexo cultural da atualidade, que não admite o uso da palavra de conotação racista. Sean reconhece que a forma como seus pais usaram o termo é significativa e justificável, mas diz que sua opinião não espelha o sentimento geral da sociedade.
Memorabilia. À esq., a capa do álbum que serve de alicerce ao novo lançamento e os Lennon em registro dos concertos conhecidos como One to One, feitos em 1972 – Imagem: Imagine Peace/Yoko Ono
Em versos como Nós dizemos que ela deveria ficar apenas no lar/ e depois reclamamos que ela é desinteressante demais para ser nossa amiga, ou Se ela não fizer o que queremos/ dizemos que não nos ama, Lennon deu visibilidade à opressão sofrida pela mulher também no casamento.
A exclusão de uma canção musicalmente forte apenas pelo uso de uma palavra levantou algumas questões. Não seria melhor deixar a decisão de ouvir ou não ouvir para o consumidor? Ou manter a canção explicando sua origem e suas implicações em notas?
Em 2018, na exposição Double Fantasy, realizada no Museu de Liverpool, focada na obra do casal Ono Lennon, uma seção foi dedicada à música Woman Is The Nigger of the World, apresentada de forma contextualizada, e não causou maior comoção. A ausência da faixa, de toda forma, não tira o brilho do projeto.
Um dos aspectos mais valorosos da caixa é a remixagem feita nas faixas, que deixou algumas músicas mais coesas e com ritmo mais forte. John Sinclair, sobre a prisão do ativista, e Sunday Bloody Sunday, sobre um atentado na Irlanda, foram alongadas. As harmonias de Angela surgem mais pronunciadas.
O som, no geral, ficou mais limpo e os instrumentos mais definidos – alguns ganharam importância, enquanto outros sumiram, caso do saxofone no início de Sunday Bloody Sunday. Com novo título de New York City, o remix atual retirou o excesso de produção do disco original, deixando o som mais limpo e sóbrio.
Os dois shows realizados em prol de uma entidade de apoio à educação de crianças com problemas de aprendizado em 30 de agosto de 1972 estão presentes em três CDs. Conhecidos como concertos One to One, eles são tema de um documentário lançado nos cinemas IMAX dos EUA e Europa no início do ano.
O projeto tem sido criticado por limar uma canção na qual é usada a palavra nigger
Embora fizesse parte do roteiro desses shows, Woman is the Nigger of the World também foi cortada das versões ao vivo. Os demais CDs registram shows realizados em prol do Unicef, da libertação de John Sinclair, para arrecadar fundos para as famílias dos prisioneiros mortos na revolta do complexo penitenciário de Attica State, em dezembro de 1971, entre outros.
Também foram incluídos registros históricos de Lennon cantando clássicos de rock que ficaram famosos nas vozes de Elvis Presley e Fats Domino.
Apesar de não estar presente na caixa, a faixa não foi retirada dos serviços de streaming. Ela continua disponível para ser ouvida dentro de seu álbum original, Some Time in New York City, que, segundo o crítico Andrew Dixon, deve ser reeditado no próximo ano, no Japão.
Power to the People, além de revelar mais detalhes do caráter político da obra de Lennon, acaba por expor suas inspirações e a evolução de seu trabalho. Muitas vezes, os bastidores de um álbum produzem obras tão cativantes quanto aquilo que nos é revelado. •
… E o baú segue a ser aberto e remexido
Em novembro, outros dois lançamentos movimentam a beatlemania: o quarto volume da série Anthology e Wings, com sucessos da segunda banda de Paul McCartney
Inesgotável. A banda Wings (à esq.) existiu entre 1972 e 1979 e contava com Linda McCartney. Anthology 4 é a menos empolgante das novidades – Imagem: Redes Sociais/Paul McCartney e Universal Music
A partir de 1966, quando decidiram parar de fazer shows, os Beatles passaram milhares de horas no estúdio. Algumas vezes, eles gravaram mais de 40 takes (versões) de uma música até chegar à versão final.
Apesar de, nos últimos anos, os álbuns da banda terem sido relançados em versões de luxo, trazendo o disco original mais versões demo e alternativas, ainda existe muito material inédito, inclusive com expectativas de músicas inéditas – ou seja, não apenas de diferentes versões.
Sabe-se, por exemplo, que existe uma música chamada Carnival of Light, que ninguém nunca ouviu, mas que foi gravada em 1967, na mesma sessão em que foi registrada Penny Lane. No caso de John Lennon, em particular, são tantos os takes que algumas caixas possuem um CD chamado Evolution, que traz desde o primeiro demo até a versão final, esmiuçando o caminho da construção da música.
Por essas e outras, o adjetivo “inesgotável” é comumente atrelado ao acervo da banda inglesa. E neste fim de ano, na esteira de Power to the People, há mais coisas a caminho.
Outro lançamento, menos excitante, é o quarto volume da série Anthology, que reúne novos takes de músicas conhecidas e já exploradas em outros volumes. Algumas versões são as mesmas das caixas de luxo de álbuns lançados na última década. A remasterização das faixas esteve a cargo de Giles Martin, filho do lendário produtor da banda, George Martin, que vem trabalhando na atualização do som dos Beatles.
O Anthology 4, que será lançado em 21 de novembro, traz 36 faixas, das quais só 13 inéditas, entre elas uma versão alternativa de All You Need Is Love, gravada durante os ensaios do programa da BBC que inaugurou as transmissões mundiais por satélite em 1967. Há ainda versões das músicas que os três Beatles restantes gravaram nos anos 1990 a partir de fitas cassete deixadas por Lennon.
Gravadas com a tecnologia existente na época, Free as a Bird e Real Love tiveram as deficiências sonoras reduzidas de forma expressiva com os recursos disponíveis hoje. Giles também remasterizou os três volumes anteriores do Anthology, que estarão disponíveis em uma caixa. E a partir de 26 de novembro volta ao canal Disney Plus, em versão expandida, a série Anthology, transmitida pela primeira vez em 1995.
O projeto Anthology – que envolve a série e três volumes de CDs duplos – remonta a um momento de retomada da beatlemania, nos anos 1990, e à aparição oficial de material alternativo do grupo pela primeira vez.
Também em novembro, no dia 7, será lançado Wings, uma coleção de sucessos da segunda banda de Paul McCartney, que existiu entre 1972 e 1979, e contava com Linda McCartney e Denny Laine como principais membros.
Com 22 milhões de álbuns vendidos, a banda lançou sucessos como Live and Let Die, Band on the Run, My Love e Silly Love Songs, todos presentes na compilação, que estará disponível em dois CDs ou três LPs coloridos.
Com os discos, será lançado o livro Wings: The Story of a Band on the Run, escrito por McCartney com base em cerca de 42 horas de entrevistas inéditas, que conta a história da banda desde os primeiros shows universitários até a conquista de grandes estádios ao redor do mundo. Apesar de preguiçosa e sem nada inédito, a compilação traz algumas preciosidades como a versão do compacto de Venus and Mars/Rock Show, bem diferente da original do álbum, e o lado B C Moon.
McCartney é o mais reticente dos Beatles em lançar material inédito de seus arquivos. Mas Wings é uma experiência interessante por fazer um recorte em uma fase importante de sua carreira, sem interferência de músicas de sua produção solo. O projeto peca, contudo, pela ausência do rico arsenal sonoro oferecido por Power to the People, de Lennon. – EM
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Lennon ativista’
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