Cultura

O lápis branco

Pequena história de uma coisa inútil

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Que menino por volta de mil novecentos e sessenta e pouco não era apaixonado por uma caixa de lápis de cor da Johann Faber

Todo início de ano escolar, eu ganhava uma, novinha em folha. No primário, era aquela que tinha 12 cores e, na embalagem, umas araras, uns papagaios, uns maracanãs e um tucano todo colorido. 

Até hoje sinto um cheirinho de madeira e tinta que saia lá de dentro quando eu abria a caixinha pela primeira vez e via aqueles lápis coloridos, todos apontadinhos, todos do mesmo tamanho. 

O meu sonho era, um dia, ganhar uma caixa maior, com 24 lápis, o que somente aconteceu quando passei direto no exame de admissão e fui pro primeiro ginasial. Eu gostei da novidade, daqueles dois tons de amarelo, dois tons de azul, de verde, de vermelho. 

Mas o meu sonho mesmo – e que nunca foi realizado – era ter aquela lata verde da Caran D’Ache com 96 cores. Só de cinza, tinha uns quatro tons. 

Mas, enquanto menino de calças curtas, era com aquela caixinha de 12 cores que eu passava o ano. 

Com o verde, eu coloria as folhas de uma enorme árvore que desenhava ao lado de uma casinha pequenina, onde o nosso amor nasceu. Com o marrom, eu coloria o tronco e com o vermelho, as maçãs, num tempo em que o Brasil nem produzia maçãs. A que eu levava na merendeira, uma vez por semana, vinha da Argentina, envolvida num papel de seda azul muito cheiroso.

Com o amarelo, eu coloria as janelas da casinha, com o roxo as portas, com o cor de rosa, as flores nas janelas.

Com o alaranjado, eu coloria as laranjas dentro de um cesto, com o azul claro eu coloria as nuvens do céu que nos protegia, e com o azul escuro, o rio que passava na nossa vida, lá no fundo, cheio de piabas, sem um pingo de poluição.

O cinza, eu guardava para depois de quase tudo pronto, colorir a fumaça que saia da chaminé, caminhando para as estrelas. 

Eu sempre fui muito cuidadoso com a minha caixa de lápis de cor. Apontava um a um com uma lâmina Gillete e depois ia afinando cada ponta com uma faquinha bem afiada que minha mãe só deixava usar nessa ocasião. 

Quando chegava o final do ano, minha caixinha de lápis de cor, que era de papelão, estava meio estropiada. Os lápis minúsculos, alguns com as pontas mordidas pela aflição quando a professora anunciava arguição oral. 

Mas todo ano era a mesma coisa. Aqueles lápis pequenininhos e o branco lá, enorme, do mesmo jeitinho quando compramos a caixa na Copiadora Brasileira. 

O lápis branco sempre me impressionou porque ele nunca serviu pra nada. Às vezes, eu tentava clarear um pouco as nuvens do céu e passava por cima do azul, mas não adiantava muito. Ficava feio e sempre meio manchado. Ai eu deixava aquele lápis branco grandalhão de lado, sem uso, inútil. Nem quebrar a ponta, ele quebrava. 

Semana passada, a Crayola, uma das mais famosas marcas de lápis de cor do mundo, numa jogada de marketing, anunciou que retiraria um lápis da sua caixa de 24 cores. E fez suspense. Muita gente achou que não passava de um primeiro de abril. Não importa. Numa pesquisa no seu site, a Crayola perguntou aos consumidores qual lápis deveria ser eliminado. Apostei no branco. Eu tenho certeza que será o branco, aquele grandalhão inútil. Só pode. 

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