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O idílio revisitado

‘Paul Gauguin: O Outro e Eu’ reúne 40 obras e propõe a releitura de dois dos quadros mais icônicos do Masp

O idílio revisitado
O idílio revisitado
Pobre Pescador e Autorretrato, ambas de 1896, adquiridas por Bardi na década de 1950, são há anos requisitadas por instituições de vários países. À esq., a notícia no Diário da Noite – Imagem: João Musa/Acervo MASP e Acervo Diário da Noite/BN
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Adquirido por Pietro Maria Bardi, fundador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1951, o Autorretrato (Perto do Gólgota), de Paul Gauguin (1848-1903), foi, desde então, emprestado para mais de 60 museus – Tate e National Gallery, em Londres, e Metropolitan, em Nova York, entre eles.

A história desse quadro, adquirido da M. Knoedler & Company, lendária galeria de Nova York, e exposto pela primeira vez no Brasil durante uma recepção em uma residência da elite carioca, é também a história dePaul Gauguin: O Outro e Eu, em cartaz desde a sexta-feira 28.

A exposição reúne 40 pinturas e gravuras vindas de várias instituições francesas, como o Musée d’Orsay, norte-americanas, como o Metropolitan, e ainda da Dinamarca, da Hungria e de outros países.

“O Masp foi constituído com base no trânsito internacional do Bardi”, diz Fernando Oliva, um dos curadores. “Para adquirir as obras que compõem esse acervo não bastava ter recursos, era preciso ter relações e, é claro, um olhar. O museu tem poucas obras desses artistas canônicos, mas são sempre obras especiais. A maior prova disso é o número de requisições de empréstimos que recebemos.”

No caso de Gauguin, o museu possui, além do autorretrato, o quadro Pobre Pescador. A inserção das duas obras – ambas de 1896 – numa exposição mais ampla faz parte do processo de revisita à espantosa coleção do museu, iniciado em 2016, e que deu origem às mostras Toulouse-Lautrec em Vermelho (2017) e Degas (2020).

Um dos diferenciais dessas exposições é que elas não são, como quase todas que chegam ao Brasil, “pré-prontas”, ou seja, organizadas para viajar o mundo e, em geral, compostas de obras secundárias. Justamente por serem pensadas pela própria equipe do Masp, essas exposições permitem que tais artistas sejam vistos não apenas como os ícones que de fato são, mas também como instrumentos para a reflexão sobre a cultura brasileira.

Os curadores percorreram cem anos de bibliografia e escreveram longas cartas para solicitar empréstimos a vários museus do mundo

Paul Gauguin: O Outro e Eu, por exemplo, integra a programação do Masp dedicada às Histórias Indígenas, que, este ano, contará ainda com Carmézia Emiliano e MAHKU. Dessa forma, Gauguin, cujas obras feitas no Taiti são há sete décadas expostas no museu, recebe, a partir desses “outros”, novas possibilidades de diálogo – não imunes a críticas.

Sem negar o impacto e a ­originalidade de sua pintura, os curadores chamam atenção para o quanto o imaginário de um homem europeu em torno de um lugar “intocado” e “paradisíaco”, na Polinésia Francesa, é hoje problematizado, inclusive, por artistas das ilhas. De acordo com essas críticas, sua representação dos corpos femininos contribuiu, por exemplo, para nutrir a fantasia que, no século XX, serviu como chamariz turístico.

Gauguin viveu no exílio taitiano entre 1891 e 1893 e, passados três anos de seu regresso a Paris, voltou ao Pacífico. Foi no momento desse retorno que pintou o ­Autorretrato, no qual aparece trajado de maneira simples e integrado à população local. “Que foi buscar Gauguin na Oceania? O exótico? Não, o universal”, escreveu, em 1952, o crítico Mário Pedrosa.

O quadro Duas Mulheres Taitianas, vindo do Metropolitan, em Nova York, tornou-se, nas últimas décadas, objeto de críticas relacionadas ao “olhar colonial” de Gauguin e a sua relação com as jovens da ilha – Imagem: Metropolitan Musem of Art/NY

“É como se, no Taiti, ele tentasse construir um outro ‘eu’. Ele se afasta da identidade da elite artística francesa para se aproximar de um mundo idealizado”, relê, hoje, Oliva. “É um deslocamento não só geográfico, mas temporal. Ele retrata um tempo quase mitológico, utópico”, define a curadora Laura Cosendey, estendendo o olhar para outros quadros expostos e, em especial, para o potente Duas Mulheres Taitianas, que saiu da parede do ­Metropolitan para São Paulo.

“Esse quadro é exemplar da maneira erotizada e exotizada com a qual ­Gauguin representou o corpo de mulheres indígenas”, diz Laura. “Essa pintura é central no processo de revisão crítica da sua obra. As críticas feitas nas últimas décadas tomam por base, sobretudo, o olhar colonial e seu relacionamento com mulheres jovens do Taiti.”

A produção da exposição, iniciada em 2019, incluiu um levantamento bibliográfico que percorreu mais de cem anos; uma pesquisa de imagens condensada em cerca de 400 obras; e detalhadas cartas de até seis páginas para solicitar os empréstimos aos museus internacionais.

“Para adquirir as obras que compõem esse acervo, não bastava ter recursos, era preciso ter relações e, é claro, um olhar”, diz Oliva

Algumas das discussões com as quais a curadoria se defrontou estão contempladas no catálogo da exposição. “Não tinha sentido, a esta altura, chamar alguém para escrever mais um texto sobre o uso da cor em Gauguin”, diz Oliva. “Achamos importante trazer para o Brasil essa leitura mais contemporânea das obras de alguns artistas, caso do ­Gauguin, no que diz respeito, sobretudo, à alteridade”, completa Laura.

O olhar para esse “outro” está contemplado, inclusive, na própria trajetória do Masp, que, paralelamente à aquisição dos mestres europeus, procurava olhar para o que se fazia fora do circuito estabelecido.

“O Bardi e a Lina (Bo Bardi, arquiteta do Masp) tinham grande interesse pela questão do ‘primitivo’, do ‘popular’ e do regional’. Tanto que o museu foi pioneiro, no Brasil, ao expor obras de artistas populares”, diz Oliva, referindo-se à exposição A Mão do Povo Brasileiro (1969).

Outros exemplos desse desejo de diálogo são Exposição de Arte Indígena (1949) e Arte dos Alienados (1954), sob a coordenação de Nise da Silveira, com trabalhos de pacientes de instituições psiquiátricas. Na mesma década em que Gauguin chegou ao Masp, lá também aportaram os então chamados primitivos brasileiros, como Mestre Vitalino (1909-1963), Agostinho Batista de Freitas (1927-1997) e José Antônio da Silva (1909-1996).

Passadas sete décadas, Gauguin vê sua presença na Avenida Paulista ampliada e atualizada. Durante a montagem da exposição, na semana passada, as gigantescas caixas das transportadoras internacionais ainda presentes no espaço davam concretude ao tamanho da empreitada.

Essas caixas, feitas sob medida para cada obra, são impermeáveis e boiam no mar. Cada uma delas só embarca mediante um seguro que leva o sugestivo nome de “seguro prego a prego” e com um acompanhante, chamado courier. O courier vê a colocação do quadro e, ao fim da exposição, volta ao País para ver sua retirada e acompanhá-la de volta à parede de origem. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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