Cultura

O hiperbólico Herzog

No livro ‘O Crepúsculo do Mundo’ e no documentário ‘Fireball’, o cineasta alemão persegue o insólito

Mistério. Fireball, parceria de Herzog com o geocientista Clive Oppenheimer, investiga os impactos dos asteróides na Terra e na imaginação humana- Imagem: Redes sociais
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Exótico”, “insólito” ou “extraordinário” são termos que acompanham a maioria dos comentários sobre os filmes de Werner Herzog. Depois de mais de 50 anos alimentando o nosso imaginário com ficções e documentários sobre pessoas e eventos inusitados, o cineasta alemão aventura-se como escritor.

O Crepúsculo do Mundo não é, rigorosamente, o primeiro texto literário de Herzog. Em Caminhando no Gelo, publicado em 1978, ele narrou o esforço físico e os transes místicos durante a peregrinação a pé entre Munique e Paris, que fez como sacrifício para tentar salvar a historiadora Lotte Eisner de uma doença grave. Conquista do Inútil (2004) reuniu memórias de sua notória falta de limites durante a produção de ­Fitzcarraldo na selva amazônica, no fim dos anos 1970. O novo livro ultrapassa, porém, as convenções dos relatos em primeira pessoa e cria uma história ao mesmo tempo próxima e distinta daquelas que predominam em sua obra cinematográfica.

Sobram equivalências entre Onoda, protagonista do romance, e os personagens obsessivos de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), Fitzcarraldo (1982), O Pequeno Dieter Precisa Voar (1997) e O Homem Urso (2005).

Onoda, tenente do Exército japonês, permaneceu 30 anos escondido numa selva nas Filipinas combatendo inimigos sem saber que a Segunda Guerra havia acabado em 1945. A história real do militar inclui um epílogo ambientado no Brasil, onde ele viveu anos mais tarde em uma fazenda a criar gado em Mato Grosso. Tal como acontece com seus irmãos herzoguianos, Onoda vê a linha tênue que separa razão e irracionalismo esgarçar-se em meio à natureza, quando corpo e mente ficam submetidos ao desafio único da sobrevivência.

O interesse do romance não se reduz, contudo, à integração de mais um personagem à galeria de alucinados que fascinam Herzog. Ao trocar a tela pelo papel, o diretor explora as possibilidades diversas de cada uma dessas linguagens. Quem conhece os inúmeros documentários de Herzog reconhece a voz cavernosa que não apenas narra, mas comenta, se intromete no que vê. No lugar de narrador literário, ela torna-se mais híbrida. Sua personalidade hiperbólica domina a situação temática, mas é absorvida pela interioridade da personagem que se sobrepõe ao relato, torna indistintos o relato realista e as visões, o fluxo de impressões de Onoda.

O Crepúsculo do Mundo é quase uma descrição experimental para um cineasta que tantas vezes se projetou em seus personagens, mas que sempre tomou o cuidado de os filmar a certa distância, registrando, fascinado, as oscilações da razão alheia.

O texto literário dá a Herzog a chance de descrever e de se perder. Reafirma seu gênio cinematográfico na construção de espaços, ações e suspenses. Mas também se deixa ser arrastado pelo fluxo de percepções de Onoda – não importa se o que lemos é real ou delírio.

O CREPÚSCULO DO MUNDO. Werner Herzog.Todavia (96 páginas , R$ 54,90)

A curiosidade incessante e quase insana que leva Herzog à aventura literária também está por trás de seu mais recente trabalho como cineasta. Fireball: Mitos, Cometas e Meteoros, documentário de 2020 disponível na AppleTV, parte em busca dos impactos deixados pela queda de asteroides na superfície do planeta e na imaginação humana.

O subtítulo original, Visitantes de Mundos Sombrios, deixa mais claro o interesse de Herzog por um tema que seria banal na grade do Discovery. O cineasta alemão, acompanhado pelo codiretor, o geocientista Clive Oppenheimer, percorre o mundo em busca de crateras quilométricas e microgrãos de poeira cósmica. Retrata viajantes chegados de lugares que não existem mais e vindos de tempos cósmicos e geológicos anteriores à vida na Terra.

Meteoros são associados a hipóteses sobre a origem da vida no planeta e ao processo de extinção dos dinossauros. Eles foram interpretados como dádivas divinas e como mensagens de punição.

Um templo a Shiva construído no interior de uma cratera na Índia evoca o poder dessa divindade de aniquilar e recriar. A fusão entre vida e morte dá as caras no Dia de Finados em Mérida, no México, próximo de onde aconteceu, provavelmente, a mais cataclísmica queda de um asteroide. Segundo os habitantes de um pequeno arquipélago na Oceania, eles matam e também transportam as almas para um novo ciclo.

Em meio a essas fascinantes leituras simbólicas, Herzog e Oppenheimer entrevistam cientistas quase maníacos que coletam, examinam, preservam e perseguem meteoros de todos os tamanhos. Pois há desde os imensos, que podem extinguir a vida na Terra, até os minúsculos, que, imperceptíveis, engolimos ao tomar uma xícara de café ao ar livre.

A multiplicação de exemplos e a capacidade de capturar o entusiasmo dos cientistas com as descobertas reiteram o fascínio de Herzog pelas naturezas extraordinárias. Esses obsessivos são também grandes descobridores. E falam com um entusiasmo comum aos possuídos, religiosos e visionários. É por meio da racionalidade científica, não das interpretações transcendentes, que Fireball voa longe.

Os exploradores, os excêntricos e os pioneiros identificados como a marca de Herzog cristalizaram a leitura que vincula o cineasta alemão à tradição romântica do excesso, do indivíduo consumido pela natureza.

Fireball e O Crepúsculo do Mundo trazem outra face dessa herança, a do sublime. Nessas obras, a razão não se esgota na tentativa de dominar a natureza. Ela aprendeu a contemplar o mistério e admira o que a ultrapassa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O hiperbólico Herzog”

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