Cultura

O Günther

A gente não esquece do que aconteceu, mas se esquece de dizer o quanto se lembra. O problema é que, quando se lembra, é tarde demais para dizer

Reprodução do quadro Terraço do Café à Noite, de Vincent van Gogh
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Eu não me lembro de muita coisa na vida, mas me lembro de quando comi shitake pela primeira vez. Tinha 23 anos, vivia com o dinheiro contado para a semana em São Paulo havia dois anos e só entrei num restaurante japonês de verdade depois de algum custo e muita resistência. “Vamos com a gente, deixa de ser xarope”, era a frase que eu mais tinha ouvido naqueles dois anos. Naquelas semanas de 2004 a frase se multiplicava em proporção geométrica e variáveis em torno da palavra xarope: jacu, caipira, brega, mão-de-vaca.

A bem dizer, nem sei por que fazia tanta cerimônia para entrar ali: trabalhava havia alguns meses com um bom salário para um estagiário, não gastava com quase nada a não ser a passagem de ônibus até Araraquara e, no fim das contas, quem estava pagando a conta era meu chefe. Todo fim de ano ele fazia isso: reunia estagiários e ex-estagiários e levava todo mundo a algum lugar bacana para jantar. Por sua conta. Na época eu só saía de casa para ir pra faculdade e da faculdade para o trabalho. A pé ou de ônibus.

De tudo o que me apavorava na vida, o restaurante na Vila Madalena, cheia de gente bonita, risonha e hábil com o hashi só não era mais assustador que o Günther, um alemão de cabelos pretos, alto e troncudo que só deixava a parte de baixo do cavanhaque e falava, com a voz grossa e uma tosse característica, de todos os restaurantes da cidade como se o dia tivesse espaço para 35 refeições. Nós, os comuns, teríamos dificuldade em conhecer tudo numa única vida, mas ele, que fazia daquelas andanças um evento, não. Só sei que ali, enquanto via como as pessoas se acomodavam num balcão tomado de sakê e molho shoyo, espetei meus pauzinhos numa massa mole que, a principio, pensei que fosse a capa de gordura de algum porco. Mesmo depois que experimentei, ainda achava que era carne de porco, e foi gargalhando que o Günther me explicou que aquilo era um tipo de cogumelo. Eu mastigava, ele sorria, e enquanto eu mastigava e ele sorria eu pedia outra travessinha daquela e, de joelhos no chão e as mãos levantadas para o céu eu encarnava a Scarlett O’Hara e jurava que nunca mais haveria de passar um dia sem shitake na minha vida. Nunca mais voltei ao restaurante.

Aquele jantar foi um intervalo lúdico de uma época complicada em que eu tinha cada vez mais vontade de trabalhar com jornalismo e cada vez menos vontade de viver em São Paulo. “Você é xarope”, dizia o Günther, enquanto tentava cortar no dente a corda hierárquica entre chefe e subordinado que nos unia. Mas eu, como bom jacu, jamais conseguiria olhar para meus superiores sem titubear, sobretudo quando eles desandavam a falar dos finais de semana e dos restaurantes que eu precisava conhecer porque eu precisava parar com aquela mania de voltar pra Araraquara todo fim de semana. Eu ouvia tanto aquela conversa que quando voltava ao trabalho na segunda-feira eu evitava tocar no assunto “como foi seu fim de semana” porque a polenta de casa jamais seria páreo com o shitake da Vila Madalena nem aos camarões de não sei aonde ou aos manjares de todos os deuses.

Vendo minha relutância, ele de propósito me arrumava pautas para fazer aos domingos, e me desafiava a ficar na cidade. Eu viajava do mesmo jeito – toda sexta, encerrava o expediente e corria para a rodoviária – e voltava no domingo para trabalhar quando precisava. Se a pauta fosse no sábado, eu viajava no fim do dia. Ele não entendia o meu apego à casa dos pais e eu ficava sem graça de dizer que estava com um namoro engatado e que quanto mais tempo passasse em São Paulo, menos tempo teria para respirar longe daquela cidade que só então começava a ficar menos inóspita.

E eu só percebia que ficava menos inóspita porque, às cinco da tarde, ele ligava na sala e convencia a Roberta, até hoje uma das melhores pessoas com quem já trabalhei, a descer com ele para o bar. E a gente descia para o bar porque ele falava que tinha sede e quanto mais sede ele tinha, mais Original ele pedia, e não adiantava dizer “obrigado, não bebo” porque ele não ouvia direito, eu falava baixo, e quando via já estava no quinto copo e não sabia em que momento a cadeira deixava de ter prego e ganhava gravidade e eu começava a pegar gosto naquela porcaria amarga a ponto de voltar para o escritório, numa vila em Pinheiros com vista para os puteiros da Cunha Gago, com as pernas bambas e impossibilitado de terminar o texto que eu tinha jurado terminar naquele dia. Ele, em compensação, voltava saciado e mais disposto, e passava mais duas ou três horas noite adentro na companhia de cigarro, café sem açúcar e os rascunhos da edição do mês seguinte para a revista de uma montadora de automóveis.

Eu, que acumulava uma série histórica de jacuzice naquele tempo, talvez nunca mais sinta tanta insegurança na vida como sentia ao escrever sobre carros e vendas e estratégias de marketing de uma multinacional de automóveis – eu, que não dirigia e tinha de aprender na marra a falar sobre indústria automotiva. A sede da empresa ficava longe da revista, e cruzar a cidade até lá era sempre uma epopeia que envolvia carona, ônibus intermunicipais e táxis quando tinha de usar uma alargada camisa social. Eu, que não falava inglês e disfarçava o quanto podia quando conversava com o presidente que chegara da matriz americana. Tudo naquela fábrica me apavorava, mas nada me apavorava mais do que quando aquele sujeito enorme me chamava na sala com um recado seco: “Matheus”. Eu ia, já com medo de ele me passar alguma pauta para domingo, sentava na mesa dele, já com a certeza de que não importava o que eu falasse, ele não ia me ouvir, e a culpa não era dele, era minha, que aceitei sem querer o trabalho depois de dez minutos de conversa. Ele não ouviu (mesmo) minha consideração sobre “estou fazendo duas faculdades, talvez não consiga dar conta do estágio aqui”, e eu já não sabia como sair da encrenca que era trabalhar na revista de uma montadora sem saber onde ficava a embreagem quando ele perguntou: “Você pode começar na segunda-feira?”

Não podia, mas tranquei a faculdade e comecei. E começava sem querer a tratar o cara como chefe antes de começar a trabalhar e mal imaginava que a maior bronca que tomaria dele – talvez na vida – seria porque um dia esqueci de trocar o galão de água e ele ficava louco quando descobria que a gente tomava o último gole e não pensou que outro poderia ter sede (de água) e teria de colocar o galão sozinho. A bem da verdade, ele não gostava era de trocar o galão. Era o mal das equipes reduzidas: todo mundo fazia matéria de capa e todo mundo trocava o galão e todo mundo fazia o café. Éramos só três, mais algum colaborador eventual, a depender da edição, e durante nove meses convivemos mais entre a gente do que com a família, principalmente quando nossa família estava em Araraquara. A gente se reconhecia naquele escritório adaptado em uma casa geminada pelos passos de quem subia a escada. Até hoje posso ouvir o estalido oco daquela madeira chiando.

A verdade é que, ao fim de nove meses, era eu quem chegava a ter sede, às cinco horas da tarde, quando chegava a hora da cerveja, e chegava a ficar preocupado quando ele não nos chamava para descer. A coisa ficou mais séria quando eu postergava minha passagem de ônibus para o último horário e a cada nova rodada de cerveja eu dizia “eu pego o próximo”, “eu pego o próximo”. Foi mais ou menos nessa época que eu passei a viajar de madrugada e meu namoro por pouco não foi para o espaço.

Foi nesse tempo também que aprendi a escrever com tamanho certo. Até então, só escrevia para internet, e tanto fazia como tanto fez se um texto tinha um ou 398 parágrafos. Na revista, tínhamos que escrever a história da humanidade, pelo menos a partir da invenção da roda, em colunas comprimidas, o que fazia o Günther perder os cabelos ralos toda vez que o meu texto extrapolava o espaço. Era toda vez. “Eu gosto de nariz de cera, mas você exagera”, dizia ele, entre irônico e impaciente, quando me devolvia as folhas cheias de apontamentos e profusões de “ques” e “pelos quais” e “entretantos” que poluíam a mensagem. À boca pequena, ele se queixava da minha capacidade de encher linguiça ao longo de três longos parágrafos sem me dar o trabalho de preenchê-los com informações básicas a qualquer texto. Tipo o nome do personagem perfilado.

Ele se queixava também das minhas viagens sem volta para a Lua quando, no meio de uma conversa sobre carros e cargos, tudo o que eu queria era estar na minha cidade e para lá mandava os pensamentos para não assumir que minha vida a partir dali era aquela, entre chefes, cervejas e amigos, num fim de expediente e um espelho sobre minha jacuzice às margens de uma avenida dupla aos pés da Fnac Pinheiros – até aquela livraria me era assustadora. Entre tantos livros, ouvia-o falar sobre sua paixão por Shakespeare, que inspirara o nome do seu filho, Iago, sem saber que aquele exercício de enxugar texto que ele me fazia repetir todo dia seria era meu melhor treinamento para quando trabalhasse nos espaços reduzidos dos jornais. Tinha medo de não ser um dos seus pupilos de quem ele falava também todo santo dia: “a fulana, que trabalhava aqui, assinou a matéria de capa da revista tal e agora não bebe comigo”. Era um recado duplo: todo mundo passa daqui, bate as asas e voa, deixa de ser jacu e voe também, mas volta pra beber cerveja comigo porque tenho sede.

Certo dia, já no tempo do Facebook, ele leu um texto meu e aparentemente gostou. “Quando foi que você aprendeu a escrever? Vem beber comigo porque tenho sede”. Só então contei a ele que estava morando ali pertinho do velho escritório, coisa de cinco ou seis quadras, e que ele tinha o meu compromisso: qualquer fim de dia desses, eu passaria por lá para botar os papos em dia. Nunca mais parei ali, mas passava algumas vezes, e toda vez que passava me lembrava do Günther me dando um cheque de mil reais pela primeira vez – e pelos próximos nove meses. Aquele cheque, na prática, era meu primeiro salário (antes, ganhava apenas uma bolsa, e não era nem metade daquele valor) e isso me obrigava a abrir uma conta num banco, justo eu que morava havia dois anos em São Paulo e jamais havia entrado num banco. Depois não queria ser chamado de jacu.

Naquele fim de ano, pouco antes do jantar no restaurante descolado da Vila Madalena, o cheque veio dobrado, como uma espécie de 13º, embora estivesse trabalhando com ele havia menos de seis meses. Enquanto ele pagava minhas cervejas, eu seguia naquela vida franciscana de jacu na capital até o dia em que conferi o saldo bancário e descobri que não sabia o que fazer com tanto dinheiro. Não era tanto, mas era pra mim, e em vez de dar entrada num apartamento, um carro ou levar a namorada para viajar ou conhecer comigo o restaurante japonês eu decidi recolher as histórias que escrevia naquele escritório enquanto esperava a versão final das matérias e banquei a publicação de um livro (péssimo) de contos.

Dez anos depois, olho para o livro com uma sensação mista, mais ou menos como me lembro daquela época: sinto que não estava pronto para aquilo, mas sinto falta de quando pensei que estava. O livro foi um fracasso de público e crítica, sobretudo a minha, e se pudesse eu juntava todas as edições numa fogueira e botava fogo. Mas só os santos protetores dos jacus sabem quantas portas aqueles dias entre cerveja, textos enxutos e visitas à fábrica me abriram: no intervalo entre uma missão e outra, como que para respirar meu ressentimento por não estar em Araraquara, eu escrevia um conto, e o Günther poderia não ouvir direito, mas enxergava como poucos, e é bem pouco provável que não soubesse que eu usava parte do tempo útil e da sua conta de luz e o seu computador (porque jacu que é jacu não tem computador em casa) para um projeto pessoal – um fracasso de projeto, mas que por um bom tempo me serviu como cartão-de-visitas: “oi, sou o Matheus, tenho 23 anos, não como shitake todos os dias, não tenho carro nem casa, mas consegui pagar a edição do meu próprio livro”. O silêncio aquiescente dele sobre as minhas gambiarras me permitiu terminar o livro em paz. E sem culpa.

Por mais poluídos que sejam, aqueles textos e aquelas memórias teriam se perdido se não fosse aquele cheque extra que ganhei no fim do ano e que comemorei numa dimensão onírica das luzes foscas de um restaurante descolado entre garfadas (porque jacu desiste fácil do hashi) no cogumelo que parecia gordura de porco.

A gente não esquece das coisas com o tempo. Pelo contrário: a gente vive é dessas lembranças. Esse é o problema. Se não fosse tão jacu, poderia ter passado pelo escritório nos meus últimos dias em São Paulo para contar, num tom mais alto de voz, sem medo de parecer ainda mais jacu, que a gente não esquece do que aconteceu, mas se esquece de dizer o quanto se lembra. O problema é que, quando se lembra, é tarde demais para dizer. Pois hoje, pela manhã, soube que o Günther havia morrido no escritório, o mesmo escritório em que já o vira varar a noite, e que com ele havia morrido, pelo menos para mim, uma espécie de ligação com um jornalismo das antigas, que já era das antigas quando eu era novo – um tipo de jornalismo que fuma dentro da sala, te chama para falar do fim de semana, te lembra que é preciso ler Shakespeare de vez em quando e que não faz rodeio para dizer que não somos poetas, e sim operários. “Checa, cara, checa”, dizia ele quando sabia que eu tinha buscado alguma palavra na Lua, e não na vida real.

Dessa vida real não me lembro de muitas coisas, nem de quando ficar em São Paulo deixou de ser um esforço com gosto de fuligem, mas me lembro de quando passei a reparar nas tardes: até hoje não existe melhor hora para se fazer qualquer coisa do que as cinco horas. Depois que aceitei, sem querer, aquele trabalho que não queria, passei muito tempo sem entender se o diálogo entre surdo e mudo da nossa primeira entrevista me havia dado em troca um chefe ou um amigo, duas palavras que, por minha jacuzice, não pareciam caber na mesma frase ou mesa do bar. Hoje sei que ganhei algo melhor. Ganhei as tardes.

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