Cultura

O filme ‘Rã’ também é sobre as vitórias das mães solo e do povo negro

Em entrevista, a atriz e roteirista Ana Flavia Cavalcanti fala da busca por narrativas reais e da quebra de expectativas em relação ao filme

Val, a protagonista do filme, aguardando o ônibus para voltar pra casa. Foto: Divulgação/Rã
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Atibaia, 5h da manhã. Val acorda suas duas filhas, que precisam estar na escola antes dela ir para o outro lado da cidade cuidar das filhas da patroa. A noite anterior fora longa, tapando as goteiras provocadas por uma forte chuva. 

Val é mãe solo, a única responsável pelos cuidados com as meninas. Mesmo perdendo algumas horas de sono, a necessidade de unir os colchões por conta do pinga-pinga, foi também para as meninas uma oportunidade de dormir mais pertinho da mãe e de seu habitual aconchego. 

As cenas contadas acima integram o filme , dirigido e roteirizado pela atriz Ana Flávia Cavalcanti e por Julia Zakia, baseado em uma memória de infância de Ana com a irmã e a mãe, Waldeci. O trabalho foi premiado como melhor filme no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, integrou o Festival Internacional de Berlim e neste ano fez parte do Projeta Rocinha no Rio de Janeiro. 

Ana Flávia Cavalcanti na performance ‘A Babá Quer Passear’ no Museu do Louvre, em Paris. Foto: Divulgação

Natural de Diadema, a atriz, diretora e roteirista, Ana Flavia Cavalcanti de 38 anos coleciona premiações em suas produções, sempre com contundentes críticas sociais. Um deles, sobre a invisibilidade das empregadas domésticas e a discussão sobre lazer na performance A Babá quer passear, inspirada na menção do ministro Paulo Guedes a favor do aumento do dólar, pois “empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”.

Ana Flávia Cavalcanti também fez a professora Dóris na novela Malhação: Viva a Diferença. Atualmente, além dos projetos autorais, integra a novela Amor de Mãe e a série Sob Pressão. Também está prestes a estrear a série Onde Está Meu Coração, ainda sem data confirmada.

Esmiuçando o cotidiano de uma mãe negra, doméstica, e cuidando sozinha das filhas, não se resume a tristeza e melancolia. O anfíbio que dá nome ao filme, aliás, se torna o pivô da história.

 A diretora detalhou essa quebra de expectativa em entrevista à CartaCapital. Confira a seguir.

 

CartaCapital: A rã traz um contraponto ao esperado na trajetória dos personagens. Como foi a ideia de trazer ela para o nome e construção do filme?

Ana Flávia: Esse filme é baseado em uma história que vivi quando tinha seis anos. A imagem não saiu da minha cabeça: o carregamento enorme de rãs chegando na minha casa quando eu tinha cinco, seis anos em Eldorado, Diadema. A imagem dessas rãs sendo lavadas porque eram comida vencida, vinda de um supermercado – mistura de comida que estaria no lixo ou iria para o lixo.

E sim, tem essa questão da quebra de expectativa. Gosto muito quando as pessoas falam dessa forma porque acredito que é uma oportunidade de dizer: a expectativa de que negros roubam, assaltam, são violentos, estupram, matam e que as empregadas e trabalhadoras diaristas, mensalistas que trabalham limpando as casas das famílias brancas vão roubar, tudo é uma invenção da branquitude. Essa é uma expectativa criada por eles mesmos. Tem uma quebra nesse sentido.

CC: Em seus outros trabalhos como a ‘Serviçal’ e a ‘Babá quer passear’, você trata das realidades distintas dos trabalhadores negros e brancos. Pessoalmente, como é pra você essa diferença?

AF: Eu relaciono mais isso com o começo da carreira. À saída de casa. Porque, como eu não tinha dinheiro, tinha que trabalhar muito com qualquer coisa. Me desgastei muito e aceitei quase todo tipo de trabalho, costumo dizer que eu fiz quase tudo. Não me prostitui porque não consegui, mas tentei uma vez.

Nunca quis ser atriz, nunca tive esse sonho, nem sonhei com alguma profissão específica. Acho que porque as pessoas não sonham muitas coisas pra gente, em razão da escassez. A mobilidade social foi um divisor de águas na minha vida. Inclusive para construir outros futuros para nossas crianças.  

Prefiro levar a narrativa e a história boa,não quero vir a público contar que hoje eu vivi uma situação ‘X’ de racismo. Prefiro pegar essa situação que eu vivi e transformar ela em uma narrativa. Pode ser performance, um texto, um filme. Desconstruir, sair desse lugar. Também fui tendo muita boa sorte com meus orixás e não me deixo abater porque a gente não pode se deixar abater. A gente dá uma chorada e segue em frente, isso que tem que ser. 

CC: Em uma das cenas do filme, depois que a Val e as filhas se ajudam para se livrar das goteiras dentro de casa, algumas mulheres aparecem enquanto elas dormem, tirando os potes com a água da chuva. Quem elas são?

AF: Pra mim elas representam as nossas ancestrais, as mulheres das nossas famílias, as mulheres das famílias, as nossas vizinhas que sempre nos ajudaram. As nossas anjas da guarda, nossas orixás. Minha mãe é umbandista e eu pratico candomblé. Minha família é kardecista, então essa presença do espírito é muito forte na minha construção pessoal. Não podia deixar de trazer isso no filme, mas acredito que cada espectador constrói dentro do seu imaginário quem são essas mulheres. 

Sinto que nós somos muito protegidas na minha família e percebo que essa proteção vem dessas mulheres, que vieram antes e fizeram muitas coisas que a gente desconhece. Até porque nós, negros no Brasil, não temos muitos registros do passado. Não sabemos direito quem foram os nossos e as nossas. Não tem fotografia, não tem filmagem de festa de quinze anos, de festa de seis anos igual muitos amigos brancos nossos tem. 

Eu fico sempre impressionada quando eu vou na casa de um amigo, de uma amiga que a pessoa abre aquela gaveta com um monte de VHS [gravações de vídeo], aniversários ou até mesmo filmagens aleatórias de domingos, sábados e festas. Eu não tenho quase registro da minha infância, sabe? A minha mãe menos ainda, a minha avó nunca vi, só tem uma foto do casamento dela.

CC: Sobre a importância da mobilidade social para a população negra, como evitar ou atenuar retrocessos?

AF: A gente tem que seguir falando disso. Porque, por mais que pareça uma coisa já muito dita, toda hora vivemos pequenas, médias e grandes situações a partir do racismo estrutural. Quando falamos estrutural é porque o racismo está na estrutura mais básica da sociedade.

De sentar no restaurante e o garçom não vir te atender. Tentar entrar em um prédio ou no estacionamento da casa do seu namorado, coisa que já acontecey comigo e o porteiro não abrir.

Temos que seguir falando. Com as palavras, mas sobretudo com os nossos trabalhos. Porque o recorte do trabalho é fundamental. Ocupando os espaços, se apresentando pra sociedade. Esse movimento é sensível, pequeno, mas faz toda a diferença. 

Gosto muito desse recorte da vitória, de como a gente dá conta, apesar de todas as violências. Mas sem deixar de acusar o racista. A gente tem que botar o dedo e dizer não, isso a gente não aceita mais.

CC: Esse ‘dar conta’ no filme é cercado de um coletivo e de afetividade. E na sua vida, quem são as pessoas que fortaleceram sua caminhada?

AF: São as mulheres que me cuidaram: minha madrinha Rosa, minha madrinha Silvinha, Cida. Também são as minhas tias Vani, Lucia. Minhas vizinhas de Atibaia, as amigas da minha mãe. Temos uma relação muito profunda com os nossos vizinhos nas periferias. O vizinho salva, empresta 1 quilo de arroz, 1 quilo de feijão, fica com teu filho pra você trabalhar.

Eu ficava olhando minha mãe assim de manhã ela me acordava e depois ela acordava minha irmã, muito cedo sempre pra escola e depois ela já ia trabalhar. Antes de levantar da cama, eu ficava pensando: “Gente, minha mãe me acorda, acorda minha irmã. Mas quem acorda a minha mãe? Quem acorda ela?”. Eu acho que é sobre isso. Sobre uma mulher que teve que acordar sozinha a vida inteira, e que deu conta de cuidar de três filhos lindamente.

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