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O feitiço das bruxas de Oz

Estreia no Brasil uma nova montagem de Wicked, espetáculo ridicularizado ao estrear na Broadway, 20 anos atrás, mas hoje tornado cult

O feitiço das bruxas de Oz
O feitiço das bruxas de Oz
A versão de 2023, encenada em São Paulo, abre mão do cenário opulento, mas coloca Elphaba para voar sobre a plateia – Imagem: João Caldas
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Wicked, em cartaz no ­Teatro Santander, em São Paulo, desde a quinta-feira 9, é mais que um musical: é um objeto de culto. Desde que estreou nos palcos da Broadway, em outubro de 2003, o espetáculo, que tem canções do compositor Stephen Schwartz e roteiro de Winnie Holzman, já foi montado em 16 países e acumula um público de 60 milhões de espectadores.

Atualmente, está em cartaz nos Estados Unidos (na Broadway e numa turnê itinerante), Inglaterra e Alemanha. A história da amizade pregressa de Glinda e da Bruxa Má do Oeste – aqui chamada de Elphaba – costuma reunir uma plateia ruidosa, que não apenas vai ao teatro com a fantasia das personagens, como também, vez ou outra, canta com as protagonistas – isso aconteceu na versão anterior do espetáculo apresentada no Brasil em 2016, quando a plateia cantou, em coro, Defying Gravity. Hollywood também prepara sua versão de Wicked, prevista para estrear em 2024.

Mas, afinal de contas, o que transformou essa peça massacrada sem dó pela crítica em sua estreia, 20 anos atrás, num produto cult? Uma das respostas está na própria história. O livro no qual o espetáculo se baseia, Wicked: A ­História Não Contada das Bruxas de Oz (1995), de ­Gregory Maguire, maneja com habilidade a relação entre a menina mais popular da escola (Glinda, a bruxa boa) e uma adolescente verde, hostilizada pela aparência e por ser, supostamente, responsável pelo defeito físico da irmã e pela morte da mãe (Elphaba, a bruxa má).

O retrato da prática do bullying e a divisão do mundo entre perdedores e vencedores toca o público em geral e, especialmente, os adolescentes. “Por mais pueril que a história possa parecer à primeira vista, ao mergulharmos nela vemos a profundidade das questões trazidas pelo texto”, diz Cleto Baccic, um dos produtores do espetáculo, e que interpreta o professor/bode Mr. Dillamond.

Há, além disso, a força da música de Schwartz, um compositor identificado com figuras à margem da sociedade. Em Godspell (1971), ele mostrava um grupo de pessoas frustradas com seus empregos que encenava a Paixão de Cristo nas ruas de Nova York. Pippin (1972) trata da inadequação de Pepino, filho do imperador Carlos Magno, com a função de príncipe. Se o rock e o pop adulto nutriram as criações de Godspell e Pippin, em Wicked ele faz um bom uso da soul music moderna e do pop.

A primeira montagem do musical no Brasil foi um sucesso. Levou 340 mil pessoas ao teatro entre março e dezembro de 2016 e ganhou vários prêmios. A nova versão, apesar de contar com as mesmas protagonistas, Myra Ruiz e Fabi Bang – respectivamente, nos papéis de Elphaba e Glinda – e as mesmas versões em português, traz mudanças.

A primeira produção era uma franquia que reproduzia a montagem original. O novo Wicked tem o texto e as canções do original americano, mas traz novos cenários e figurinos. “Faremos uma versão não réplica. Mas é o contrato com mais laudas que já tivemos até hoje. Literalmente, o dobro”, diz Baccic. “É comum submetermos aos detentores dos direitos toda a equipe criativa e o elenco para aprovação. No caso de Wicked a supervisão passa por todos os departamentos, seja uma simples peça gráfica, até a vassoura da Elphaba ou a tiara da ­Glinda, tudo tem de ser aprovado.”

Wicked foi montada em 16 países, acumula cerca de 60 milhões de espectadores e ganhará, em 2024, uma adpatação hollywoodiana

Elphaba e Glinda são papéis marcantes na carreira de Myra Ruiz e Fabi Bang, que vez ou outra replicam as canções mais simbólicas do musical em apresentações especiais. São papéis desafiadores que exigem malabarismos vocais e fôlego. “O final de Defying Gravity acontece no encerramento do primeiro ato. Ainda tenho o segundo ato inteiro e, geralmente, uma segunda sessão completa pela frente”, explica Myra. “A dificuldade maior da Elphaba é sustentar a semana como um todo: todas as sessões, agudos, gritos e correria. Tenho de dosar a voz para aguentar tudo isso.”

O Wicked 2023 abre mão do cenário opulento das versões mais celebradas. Saem de cena, por exemplo, o dragão que adorna o topo do palco e as grades nas quais os macacos voadores se dependuravam. Há, por outro lado, um bom uso de vídeos para as cenas que pedem efeitos especiais e pelo menos um grande trunfo: Elphaba “voa” sobre a plateia durante a execução de Defying Gravity.

“Canto pendurada por uma espécie de cinto de segurança que aperta o abdome e a costela”, conta Myra. “Estou no processo de aprender a usar a pressão a meu favor, para ajudar o apoio vocal e não atrapalhar. Mas a reação do público com a cena do voo vai me dar a adrenalina necessária pra sustentar tudo que preciso.”

A quem torce o nariz para a importação de musicais da Broadway, Wicked apresenta pelos menos dois trunfos. Um é o fato de que emprega 250 pessoas e faz parte do processo de retomada da indústria dos musicais, combalida pela pandemia e pelos entraves impostos à Lei Rouanet nos anos recentes. O outro é que trata de temas que andam bem perto de nós, como a intolerância e o totalitarismo.

“O texto coloca uma lupa sobre tudo o que há de pior no ser humano: a intolerância, que dá margem à segregação, ao preconceito e ao fundamentalismo. O indivíduo passa a crer que existe uma verdade absoluta e que, nesse caso, é sobre o que ele acredita”, diz Baccic. “É muito importante exercitarmos um olhar mais apurado e delicado sobre o outro, ainda mais neste momento em que qualquer opinião divergente vira cancelamento.” •

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O feitiço das bruxas de Oz’

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