Cultura
O feitiço das bruxas de Oz
Estreia no Brasil uma nova montagem de Wicked, espetáculo ridicularizado ao estrear na Broadway, 20 anos atrás, mas hoje tornado cult


Wicked, em cartaz no Teatro Santander, em São Paulo, desde a quinta-feira 9, é mais que um musical: é um objeto de culto. Desde que estreou nos palcos da Broadway, em outubro de 2003, o espetáculo, que tem canções do compositor Stephen Schwartz e roteiro de Winnie Holzman, já foi montado em 16 países e acumula um público de 60 milhões de espectadores.
Atualmente, está em cartaz nos Estados Unidos (na Broadway e numa turnê itinerante), Inglaterra e Alemanha. A história da amizade pregressa de Glinda e da Bruxa Má do Oeste – aqui chamada de Elphaba – costuma reunir uma plateia ruidosa, que não apenas vai ao teatro com a fantasia das personagens, como também, vez ou outra, canta com as protagonistas – isso aconteceu na versão anterior do espetáculo apresentada no Brasil em 2016, quando a plateia cantou, em coro, Defying Gravity. Hollywood também prepara sua versão de Wicked, prevista para estrear em 2024.
Mas, afinal de contas, o que transformou essa peça massacrada sem dó pela crítica em sua estreia, 20 anos atrás, num produto cult? Uma das respostas está na própria história. O livro no qual o espetáculo se baseia, Wicked: A História Não Contada das Bruxas de Oz (1995), de Gregory Maguire, maneja com habilidade a relação entre a menina mais popular da escola (Glinda, a bruxa boa) e uma adolescente verde, hostilizada pela aparência e por ser, supostamente, responsável pelo defeito físico da irmã e pela morte da mãe (Elphaba, a bruxa má).
O retrato da prática do bullying e a divisão do mundo entre perdedores e vencedores toca o público em geral e, especialmente, os adolescentes. “Por mais pueril que a história possa parecer à primeira vista, ao mergulharmos nela vemos a profundidade das questões trazidas pelo texto”, diz Cleto Baccic, um dos produtores do espetáculo, e que interpreta o professor/bode Mr. Dillamond.
Há, além disso, a força da música de Schwartz, um compositor identificado com figuras à margem da sociedade. Em Godspell (1971), ele mostrava um grupo de pessoas frustradas com seus empregos que encenava a Paixão de Cristo nas ruas de Nova York. Pippin (1972) trata da inadequação de Pepino, filho do imperador Carlos Magno, com a função de príncipe. Se o rock e o pop adulto nutriram as criações de Godspell e Pippin, em Wicked ele faz um bom uso da soul music moderna e do pop.
A primeira montagem do musical no Brasil foi um sucesso. Levou 340 mil pessoas ao teatro entre março e dezembro de 2016 e ganhou vários prêmios. A nova versão, apesar de contar com as mesmas protagonistas, Myra Ruiz e Fabi Bang – respectivamente, nos papéis de Elphaba e Glinda – e as mesmas versões em português, traz mudanças.
A primeira produção era uma franquia que reproduzia a montagem original. O novo Wicked tem o texto e as canções do original americano, mas traz novos cenários e figurinos. “Faremos uma versão não réplica. Mas é o contrato com mais laudas que já tivemos até hoje. Literalmente, o dobro”, diz Baccic. “É comum submetermos aos detentores dos direitos toda a equipe criativa e o elenco para aprovação. No caso de Wicked a supervisão passa por todos os departamentos, seja uma simples peça gráfica, até a vassoura da Elphaba ou a tiara da Glinda, tudo tem de ser aprovado.”
Wicked foi montada em 16 países, acumula cerca de 60 milhões de espectadores e ganhará, em 2024, uma adpatação hollywoodiana
Elphaba e Glinda são papéis marcantes na carreira de Myra Ruiz e Fabi Bang, que vez ou outra replicam as canções mais simbólicas do musical em apresentações especiais. São papéis desafiadores que exigem malabarismos vocais e fôlego. “O final de Defying Gravity acontece no encerramento do primeiro ato. Ainda tenho o segundo ato inteiro e, geralmente, uma segunda sessão completa pela frente”, explica Myra. “A dificuldade maior da Elphaba é sustentar a semana como um todo: todas as sessões, agudos, gritos e correria. Tenho de dosar a voz para aguentar tudo isso.”
O Wicked 2023 abre mão do cenário opulento das versões mais celebradas. Saem de cena, por exemplo, o dragão que adorna o topo do palco e as grades nas quais os macacos voadores se dependuravam. Há, por outro lado, um bom uso de vídeos para as cenas que pedem efeitos especiais e pelo menos um grande trunfo: Elphaba “voa” sobre a plateia durante a execução de Defying Gravity.
“Canto pendurada por uma espécie de cinto de segurança que aperta o abdome e a costela”, conta Myra. “Estou no processo de aprender a usar a pressão a meu favor, para ajudar o apoio vocal e não atrapalhar. Mas a reação do público com a cena do voo vai me dar a adrenalina necessária pra sustentar tudo que preciso.”
A quem torce o nariz para a importação de musicais da Broadway, Wicked apresenta pelos menos dois trunfos. Um é o fato de que emprega 250 pessoas e faz parte do processo de retomada da indústria dos musicais, combalida pela pandemia e pelos entraves impostos à Lei Rouanet nos anos recentes. O outro é que trata de temas que andam bem perto de nós, como a intolerância e o totalitarismo.
“O texto coloca uma lupa sobre tudo o que há de pior no ser humano: a intolerância, que dá margem à segregação, ao preconceito e ao fundamentalismo. O indivíduo passa a crer que existe uma verdade absoluta e que, nesse caso, é sobre o que ele acredita”, diz Baccic. “É muito importante exercitarmos um olhar mais apurado e delicado sobre o outro, ainda mais neste momento em que qualquer opinião divergente vira cancelamento.” •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O feitiço das bruxas de Oz’
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