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O espetáculo como maldição

Em seu terceiro longa-metragem, Não! Não Olhe!, Jordan Peele lança mão da ficção científica para fazer uma crítica à própria indústria do entretenimento

Imagem: Universal Pictures
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Diz-se que coincidências não existem. Apesar de não parecer planejada, a estreia simultânea de dois filmes de cineastas negros, um deles produto da indústria hollywoodiana e o outro expressão da periferia brasileira, aproxima, na tela, propostas de cinema distintas, mas não opostas. Tanto em ­Marte Um  quanto em Não! Não Olhe! o céu ocupa lugar importante. Sinal, talvez, de que nem tudo é por acaso.

Não! Não Olhe! chega aos cinemas, na quinta-feira 25, cercado de expectativa. Corra! (2017) colocou o nome de seu diretor, Jordan Peele, entre aqueles a serem rastreados. Nós (2019) confirmou seu talento para integrar crítica social e entretenimento. Era de se esperar o burburinho em torno do projeto seguinte.

Para não estragar os prazeres da descoberta, dá para dizer que, em seu terceiro longa-metragem como diretor, Peele – que trabalha também como ator – desobedeceu à previsibilidade da indústria do entretenimento. Ele recupera fórmulas antigas, mas não esgotadas, de diversão sem com isso abandonar outros níveis de significado. Peele radicaliza a estratégia adotada em Nós e produz um filme que é a cara dele sem se repetir.

A presença do ator Daniel Kaluuya, protagonista de Corra!, sugere um retorno a elementos conhecidos, ao prazer do reconhecimento e da repetição. Mas não é o que acontece.

O racismo, tema nítido nos dois outros filmes do diretor, surge de forma mais difusa

O racismo subjacente às relações sociais, tema nítido nos dois primeiros filmes, ressurge de modo mais difuso e alegórico. A apropriação do cinema de gênero é retomada. No lugar do terror, entra a ficção científica delirante dos filmes de invasão alienígena, com direito a disco voador e tudo.

Enquanto a geração de Steven ­Spielberg, George Lucas e amigos resgatou o imaginário do cinema de gênero dos anos 1950 e injetou grandes orçamentos na fantasia para encantar o público de filhos dos jovens de outrora, o pastiche praticado por Peele atende a outros – e mais elaborados – propósitos.

Sua releitura não é apenas tributo, colagem de citações para o fã gozar com seu elevado conhecimento de cultura pop. ­Peele, como Shyamalan antes dele e ­John Carpenter mais longe, filma com uma câmera na mão e um bisturi na outra. Usa o gênero como forma popular para expor o que o entretenimento oculta. Não faz isso como negação, mas como apropriação.

O título brasileiro Não! Não Olhe! também poderia ser Olhe! Olhe Bem!, para alertar que não há inocência no entretenimento, que cinema é a melhor diversão e é também mais que diversão.

Pela terceira vez em ficções recentes, olhar é um ato que comporta riscos. Bird Box (2018) forçava seus personagens a cobrir os olhos como único recurso para evitar uma epidemia de suicídios. Em Não Olhe para Cima (2021) sugeria-se, de modo satírico, que a destruição não ocorreria se a população ignorasse a aproximação do cometa.

Não! Não Olhe! trata o olhar como um gesto derradeiro, um descontrole que converte smartphones e a mania de fotografar e gravar tudo no mais eficiente mecanismo de extermínio.

Desde a epígrafe bíblica, uma passagem do livro de Naum, o filme anuncia o espetáculo como forma de maldição. Não por acaso, a ameaça tem a aparência de um aspirador que devora tudo sem distinção. •


MARTE UM E O PRESENTE BRASILEIRO

O filme de Gabriel Martins, destaque no Festival de Gramado, acompanha uma família preta de Contagem, na Grande BH

O caçula do clã deseja se tornar astrofísico e colonizar Marte – Imagem: Embaúba Filmes

Marte Um parece nome de ficção científica. Mas o filme, que estreia nas salas de cinema logo depois de vencer um punhado de prêmios no Festival de Gramado, tem os dois pés afundados neste presente brasileiro que ultrapassou as fronteiras da alucinação.

O longa-metragem do mineiro Gabriel Martins começa com o anúncio da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Imagens da posse do presidente também se intrometem no cotidiano dos personagens. Contudo, ninguém se exalta. Deixa quieto.

O viés político do filme não se detém nesse lugar oficial. O cinema de Martins, assim como o feito por seus parceiros na produtora Filmes de Plástico, André Novais de Oliveira e Maurílio Martins, mostra a política onde ela parece não estar.

Marte Um acompanha um microcosmo social, uma família preta de Contagem, cidade da Grande BH associada à indústria pesada, ao proletariado e às múltiplas formas de exclusão.

O pai é porteiro em um condomínio de alto padrão e a mãe trabalha como diarista. A filha mais velha está concluindo o curso de Direito e o caçula sonha em se tornar astrofísico e embarcar numa missão para colonizar Marte.

A condição de cada um já traduz características comuns da população preta e de baixa renda no Brasil, e o roteiro de Martins não perde tempo reiterando discursos.

A opção de acompanhar os quatro protagonistas sem hierarquizar seus valores injeta no filme um tom que o cinema brasileiro nem sempre alcança. Temas como sexua­lidade, gênero, educação, exploração e depressão fazem parte desse retrato sem que o filme se confunda com um quadro de mensagens.

Embora aborde a agenda da diversidade de modo explícito, Marte Um o faz ressaltando as contradições, confrontando o individual com as negociações inevitáveis no coletivo.

Por isso, seus personagens carregam mais dúvidas que certezas, são inconstantes e tombam. Essa qualidade é valorizada pelo trabalho coeso do elenco. Mesmo nas cenas frágeis, quando Martins parece confiar mais no texto do que na imagem, os atores ultrapassam as falas.

O efeito é como escutar os relatos dos milhares com quem cruzamos nas ruas. Suas histórias são comuns, mas mais dramáticas que a maioria das ficções.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O espetáculo como maldição”

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