Cultura

O Encontro Marcado

Nada terá tanto impacto como aquilo que lemos e ouvimos na juventude. Mas há clássicos que ganham força depois dos 30. Por Matheus Pichonelli

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“Não dá para esperar a hora certa. Ela simplesmente não existe”. A sentença tinha sido proclamada por um amigo que acabava de se lembrar da última vez que tirara férias para ler um livro, digamos, de formação. Estava ainda na faculdade. Desde então os descansos, ordinários ou não, eram compostos por sono, sonho, novos cansaços e outras atividades práticas, como ler bulas de remédio ou roteiros de viagens antes das viagens.

Foi quando me dei conta: tudo o que lemos, ouvimos ou assistimos realmente de importante havia ficado em algum canto do novo século, quando estávamos às portas dos 20 anos e tínhamos muito tempo pela frente para adiar qualquer decisão. Grande Sertão: Veredas e São Bernardo me foram apresentado entre a primeira e a segunda fase do vestibular; Brás Cubas e os contos machadianos, no colégio; Fernando Pessoa, no cursinho; Marx e Weber, na faculdade. Ao fundo, havia uma trilha sonora: nunca mais o mundo seria o mesmo depois que ouvimos, fora de época, o primeiro coro do MPB4 em Roda Viva. Ou as metáforas intercaladas de Construção. Ou o movimento impreciso e calculado de Alegria, Alegria. Ou a profissão de fé de A Palo Seco (“tenho 25 anos de sonho e de sangue e de América do Sul”).

Os impactos dos primeiros acordes ou linhas são devastadores quando somos ainda um campo aberto a conquistas e explanações. Mas, depois dos 21 ou dos 22, quase tudo era revisita. Ou leituras de releituras de quem, em algum momento, também bebera da mesma fonte.

Em diante, passamos (eu, pelo menos) a jogar na retranca, administrando o jogo, citando velhas fórmulas, velhas frases, sem o mesmo fôlego nem a mesma sede para ir e voltar ao ataque. (Lembro de um amigo que, toda vez que tirava férias, parava para reler O Capital. Eu, por mim, ficava aliviado por ter tido contato com ele antes dos 21. Depois disso, o livro entraria na lista de todas as missões adiadas uma vez e esquecidas para sempre: Em Busca do Tempo Perdido, sem intenção do trocadilho, A Montanha Mágica, Ulisses, Os Sertões, Ilíada, Shakespeare).

Dias atrás, comprei, em versão de bolso, a antologia de Álvaro de Campos, meu homônimo favorito de Fernando Pessoa. Quando adolescente, adorava recitar trechos da Tabacaria que havia decorado, só para lembrar a mim mesmo que estava vivo. Lembro hoje, com certo esforço, daqueles trechos, mas os novos, os que resolvi desbravar dias atrás, já não provocavam o mesmo estrago. Não que não me causasse impacto. Mas o impacto era sempre seguido de uma impressão incômoda: por que não li isso antes, aos 18 anos? O que seria capaz de fazer com tudo isso quando tinha no bolso a coragem de não ter medo de perder tempo – quando todos mandavam esperar a hora certa da maturidade para tomar qualquer decisão.

“Mas não teve nada nada dos 25 pra cá que fosse realmente bom?”, perguntou o meu amigo do primeiro parágrafo.

Parei um pouco e pensei. Teve. Algumas coisas em certa medida eram ainda melhores que os primeiros versos, os primeiros filmes, os primeiros sons (Bergman, por exemplo, só descobri tardiamente. Roth e Bolaño, idem. Ou mesmo o álbum Tropicália – ou Panis Et Circenses, cuja complexidade passaria desapercebida dez ou quinze anos antes). Mas no cinema, para ficar só em um dos campos, nada foi capaz de provocar tanto impacto como a primeira vez que assisti, aos 22 anos, As Invasões Bárbaras – aconteça o que acontecer, será sempre meu filme favorito, por me deixar a certa altura da vida em uma encruzilhada, como aqueles personagens remanescentes do Declínio do Império Americano, do mesmo Denys Arcand: “experimentamos de tudo, das drogas às condutas, passando pelas teorias mais bem acabadas, e não salvamos nem a nós mesmo: você vai fazer o mesmo com você?”.

Vasculhava na memória e antes que o tempo da resposta se esgotasse, notei o exagero: “sim, houve sim algo tão impactante”. Lembrei que, quando completei 31 anos, no mês passado, manifestei em meu blog pessoal (leia AQUI) uma certa inquietação: depois de muito tempo, voltava a jogar futebol de salão regularmente, com uns meninos do prédio que produziam, em duas horas de peleja (levada mais a sério do que qualquer tarefa que faríamos ao longo da semana), um exercício de aniquilamento da minha autoestima. Aos 31, eu me tornava cobaia de dribles, era preterido na escolha dos primeiros times e me obrigava a ouvir quieto o goleiro enfiar o dedo na minha cara a cada passe torto que eu arriscava. E me assustava sobretudo com o fato de alguns desses meninos terem nascido no ano em que eu jogava no time amador do clube da nossa cidade, Araraquara.

A sensação de ser deixado para trás no futebol, escrevi, era um prenúncio de um esgotamento que viria à frente: logo aqueles meninos invadiriam as redações e ririam também das nossas incapacidades cognitivas diante de tecnologias ainda nem sequer inventadas. Não deve ter sido outro o susto de quem aprendeu a escrever em máquina de escrever e se deparou, a certa altura, com o comando “control alt del” – que, mais do que Rosa ou Pessoa, mudou as formas de agir, pensar e sentir da minha geração.

Foi nesse contexto que ganhei, de outro amigo, o livro O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. “Li o seu texto sobre o futebol de salão. Você vai entender por que ganhou esse livro”, me disse ele.

Foi na veia. O livro estava na lista das obras que um dia eu pararia nas férias para ler e lamentaria não ter tido tempo suficiente na volta ao trabalho. Pois elegi aquele dia, o dia do meu aniversário, como o momento certo para ler o clássico de Sabino, sem saber que o livro tratava, na base e na alma, da minha própria projeção de hora certa. Era como se o personagem, Eduardo Marciano, um grande autor de obra alguma, visitasse todos os meus temores aos 5, aos 10, aos 15, aos 20, aos 25 e aos 30 anos de idade – ele vai além da velhice, mas esta eu ainda não alcancei. Marciano era a minha geração, mas também a do meu avô, a dos meus pais e possivelmente será a do meu filho. Era aquilo que éramos e o que não queríamos ser: um escritor fechado eternamente para balanço, à espera da hora certa para escrever, se dedicar, e deixar de adiar, consciente ou não, a manufatura da prova de que era capaz de ser tudo o que um dia quis – sabendo, de antemão, que não era capaz. Quando jovem, era um nadador, um escritor e um intelectual promissor; quando adulto, uma eterna promessa jamais cumprida. A certa altura da vida conclui: “Há uma idade em que nada do que fizermos abaixo de Guerra e Paz será suficientemente bom. Ao mesmo tempo, não podemos querer menos do que escrever um novo Guerra e Paz”. E por que não escreve? Porque escrever é abrir mão de tudo, como alertava ao personagem um escritor fracassado do mesmo livro: “Viver é escolher um caminho entre cem e passar o resto da vida lamentando não ter optado pelos outros 99. Mas escolher escrever é como abrir mão de todos os cem”.

Tudo me levou a uma overdose de Sabino. Nos dias sequentes, só queria falar sobre um assunto. E me deparei com uma antiga entrevista dele ao Roda Viva, gravada em 1990 e disponível no YouTube – com Caio Fernando Abreu na bancada de entrevistadores – em que o escritor mineiro dizia: “O Encontro Marcado influenciou muita gente porque todo mundo já passou por isso: não é fácil descobrir que não somos um gênio e sim, no máximo, talentozinhos”.

Aos 31, com um livro que não valeu a pena ser escrito nas costas e todos os outros à espera do momento ideal, nada poderia ser tão avassalador – nem aos 20, nem aos 15, nem aos 10. Vamos continuar escrevendo? Se sim, o quê? Alguém sinceramente vai se importar? Terá sido em vão? Não sei. E como não passarei – espero – os próximos anos dormindo, o que acontecer aos 50, 60 ou 70 já não será futuro. Será, e não apenas, um encontro marcado comigo mesmo.

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