Cultura

O dia em que fiz um funk com Mister Catra

Cantor pra lá de horroroso, eu, o mineiro Mister Bean, gravei com Catra e fui lançado por ele em show para 10 mil fãs

Mr. Catra e MC Galudão
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Há três anos eu, jornalista, apresentava no History Channel uma série chamada “O Infiltrado”. Consistia numa grande reportagem fundida a um reality show para o qual, este o segredo, eu não levava o menor jeito.

Mais ou menos o seguinte: para conhecer o mundo dos evangélicos, abri uma igreja. Para conhecer o universo do funk, me transformei em funkeiro. O périplo para se chegar a tal era o próprio objeto do programa, indicado a um Emmy Internacional.

No episódio sobre o funk, procurei o compositor e produtor de bailes Power Ranger, famoso no Rio de Janeiro. Sentados em um bar na Vila Cruzeiro, Complexo do Alemão, escrevemos a letra com a qual planejava estourar em minha incipiente carreira. Algo que falava sobre vôlei e cujo infame refrão sugeria ao ouvinte que sacasse, bem, com o meu saco: “Saca, saca como eu saco”.

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Foi Power Ranger que me levou ao estúdio do DJ Dênis, o grande produtor do funk no Brasil. Em “O Infiltrado” eu fazia um tipo Mister Bean, o mineiro abobalhado que de fato eu devo ser. Como Ranger me achava por demais assemelhado a um “playboy falido”, e o DJ Dênis via resquícios impróprios de “velho roqueiro”, trataram de me adornar com colares dourados, grandes óculos escuros, relojão, camisão e boné de aba reta.

Estava eu nessa beca quando surgiu Mister Catra. Estava com 46 anos e tinha feito de tudo no funk, até uma tentativa frustrada de montar um partido político dos rappers e funkeiros. No passado, tinha sido punk de moicano. Em 2015 cantava o “funk putaria” e flertava com o “funknejo”, uma mistura com o sertanejo, argh!

“O funk é a melhor maravilha do mundo”, me disse. “Muita gente tem vergonha, eu tenho o maior orgulho.” Ali, ao lado daquele Ronaldinho Gaúcho do batidão, tratei de fazer minha embaixadinha. E à capela mandei o funk mal enjambrado que tinha composto com Power Ranger.

Catra parecia diante de uma assombração. Olhava boquiaberto aquela lamentável figura desprovida de qualquer swing, um cantor pra lá de horroroso, cujas vestimentas remetiam a um coadjuvante de A Praça É Nossa.

Finda a cantoria, ele, certamente chapado, concluiu em carioquês: “Goxtei”. Propôs também, ao modo do repente, um enxerto à letra, que saiu assim de seu vozeirão: “E o bagulho é doido, é verdade pois não minto. Se saca como eu saco, pinta como eu pinto”.

Naquela tarde gravamos a música em estúdio, eu e Catra. Ele me batizou MC Galudão, ao tomar ciência da minha devoção pelo Atlético Mineiro. Sem que tivéssemos combinado nada, rumamos para a casa dele, em um condomínio na Barra da Tijuca. Ele estava realmente disposto a me apadrinhar.

Na ocasião, Catra tinha 23 filhos (quando o programa foi ao ar já eram 25). Havia uma constante balbúrdia vinda dos numerosos quartos de sua casa, onde abundavam os beliches.

As panelas da cozinha eram ao estilo bandejão de fábrica. No quintal havia um rotweiller disposto a tudo para conseguir um sexo com algum biscate de nossa equipe. “É o cachorro do Catra, né?”, resumiu um de seus filhos.

Sentado na sala sob um grande quadro com uma nota de dólar e a inscrição “Buceita”, Mister Catra fumava um enorme baseado enrolado em uma seda transparente. Me aprocheguei nas almofadas e quis saber mais sobre a Buceita, a “seita” à qual Catra se dizia filiado. “Buceita: ou aceita ou não aceita”, foi o máximo que consegui retirar de sua mente, àquelas alturas um tanto enfumaçada.

 

Em 2015, Catra fazia cerca de 40 shows por mês (às vezes havia dois ou três por noite). Cobrava entre 30 mil e 40 mil reais a apresentação. Naquela mesma noite, me convidou para cantar com ele em Campo Grande, subúrbio do Rio. Fomos para o show com Catra ao volante, dirigindo um SUV a 170 por hora (não estou aumentando), enquanto, em pânico, eu me agarrava ao “puta-merda”.

Lá pelas tantas, Mister Catra chamou ao palco “o meu amigo MC Galudão”. 10 mil fãs lotavam a casa. Catra não fazia ideia de quem eu era, nunca tinha visto o programa, não sabia se de fato eu era um projeto de funkeiro ou um embuste completo saído talvez de algum quadro do Pânico. Subi.

Mandei meu funk, em playback como uma Xuxa de boné, na companhia da “bailarina” Neide – a vendedora de joias em domicílio que eu tinha achado na pensão dos Catra cinco horas antes. Ensaiamos por 10 minutos e lá fomos nós pagar aquele King Kong. Jamais me esquecerei, embora o melhor fosse esquecer.

Catra morreu de câncer aos 49 anos. Deixou quatro esposas e 32 filhos. Uma perda irreparável para a Buceita. Um grande cara.

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