Cultura
O cronista do acaso e do amor
Ryusuke Hamaguchi conseguiu um feito: ter dois filmes selecionados e premiados no mesmo ano nos dois principais festivais de cinema do mundo


Raros cineastas conseguiram, na história, ter dois filmes selecionados e premiados no mesmo ano nos dois principais festivais de cinema do mundo. Em 2021, Ryusuke Hamaguchi conseguiu esse feito.
Três meses depois de Roda da Fortuna ter conquistado o Urso de Ouro no Festival de Berlim, Drive My Car (Dirija Meu Carro, ainda sem título em português) saiu do 74º Festival de Cannes com três prêmios. Drive My Car é também o representante japonês do Oscar e figura em nove de cada dez listas de melhores filmes de 2021.
“Foi um ano bem intenso e de muitas oportunidades”, diz, contido, por meio da tela do computador. No dia em que conversou com CartaCapital, com a intermediação de uma tradutora de japonês, o cineasta havia reservado uma hora e 20 minutos da agenda para atender jornalistas brasileiros e tentar, dessa forma, garantir maior visibilidade ao lançamento de Roda da Fortuna nos cinemas do País.
O filme, em cartaz desde a quinta-feira 6, é seu segundo trabalho a estrear por aqui. O primeiro, Asako I & II (2018), a despeito das críticas já então favoráveis, teve pouca repercussão. Mas agora é diferente. Hamaguchi entrou para o panteão do cinema de autor e, seja por conta de Roda da Fortuna – que vem sendo lançado em vários países –, seja por conta das conquistas de Drive My Car, tornou-se uma figura requisitada.
“É cansativo falar com tanta gente”, diz, sem negar que as perguntas dos jornalistas tendem a se repetir. A avalanche de conversas também propiciou, porém, encontros memoráveis. “Tive a oportunidade de conversar com a atriz Isabelle Hupert e com Bong Joon Ho, diretor de Parasita. Ele foi me ouvir falar sobre Drive My Car e ela me perguntou sobre como dirijo os atores. Isso tudo foi importante para mim. Me dá forças para continuar.”
Hamaguchi realizou o primeiro curta-metragem em 2003 e o primeiro longa-metragem em 2007. Em 2015, com Happy Hour, conseguiu abrir as primeiras portas no circuito de cinema de arte internacional e, três anos depois, debutou na competição pela Palma de Ouro, em Cannes, com Asako I e II.
Nascido em Kanagawa, ao sul do Tóquio, há 42 anos, Hamaguchi passou a infância em diferentes cidades por causa do trabalho do pai e, como quase todos os garotos, jogava videogame e adorava mangás. O interesse pelos filmes surgiu no início da juventude, a partir do contato com o cinema de autor. Nas entrevistas, é comum que mencione John Cassavetes como uma referência importante.
“Trabalho sempre com uma equipe de menos de dez pessoas. Somos uma trupe familiar”
Em seu entendimento, a virada na carreira antecede o reconhecimento internacional. Ela deu-se em 2012, durante a realização do documentário The Sound of Waves (O Som das Ondas). Nesse filme, Hamaguchi desvencilhou-se dos roteiros rígidos e passou a deixar o real invadir sua obra, tanto por meio da câmera quanto por meio dos sentimentos mais genuínos dos atores.
“Trabalho sempre com uma equipe pequena, de menos de dez pessoas. Somos uma trupe familiar”, descreve, para na sequência explicar que, no caso de Roda da Fortuna, os atores eram o centro em torno do qual a equipe orbitava. “Eles tinham um papel central e encararam o desafio de mostrar a distância entre eles apenas por meio das palavras, sem explicitar nada.”
Roda da Fortuna se divide em três segmentos, que funcionam quase como crônicas visuais nas quais homens e mulheres conversam sobre suas vivências. E embora as palavras, muitas vezes, criem o distanciamento, elas contêm também a possibilidade da aproximação. “A temática do filme é o acaso, que está ligado ao esporádico, não à rotina”, diz Hamaguchi, tateando os sentidos da própria obra.
A crítica Manohla Dargis, do New York Times, em sua entusiasmada descrição do filme, usou a expressão “geometria do desejo” para definir o roteiro. E há, de fato, algo de geométrico na construção do filme. Por mais que Roda da Fortuna remeta de forma direta a Eric Rhomer, há, em Hamaguchi, um certo rigor que o difere do realizador francês.
As suítes de Kinderszenen (Cenas da Infância), Op.15, de Robert Schumann, que retornam em diferentes momentos da narrativa, funcionam quase como um metrônomo – ainda que, ao mesmo tempo, modulem as emoções do espectador. “São melodias simples, que transmitem algo que remete à gentileza e à tranquilidade e, ao mesmo tempo, à solidão e à impermanência das coisas”, descreve. “Eu escrevia o filme ouvindo essas músicas. É como se elas contassem a história da vida daquelas pessoas.”
Para Peter Bradshaw, crítico do Guardian, os três trabalhos mais recentes de Hamaguchi são “contos cinematográficos” que ecoam temas comuns: “destino e coincidência, identidade e papel social e os mistérios do prazer erótico e do desejo”. Enquanto Roda da Fortuna foi escrito por ele mesmo, Drive My Car é adaptado de um conto de Haruki Murakami, presente no livro Homens Sem Mulheres.
Drive My Car começou a ser rodado no início de 2020 e, com a eclosão da pandemia, ficou oito meses suspenso. Na retomada, por causa das medidas restritivas que dificultam as viagens, a história foi realocada de Busan, na Coreia do Sul, para Hiroshima. No período de isolamento social, ele finalizou Roda da Fortuna.
Apesar do sucesso no circuito cult internacional, Hamaguchi diz que, no Japão, Drive My Car fez 150 mil espectadores. “É claro que para um filme meu não é um número baixo, mas também não vou dizer que seja bom”, admite, lembrando que, por lá, quase todos os sucessos são baseados em animes ou best-sellers e que também a realização de um filme de autor é dura. “Temos auxílios públicos que bancam, no máximo, 10% do orçamento, e, mesmo assim, é difícil consegui-los”, diz, mais em tom de constatação do que de inconformismo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.
CRÉDITOS DA PÁGINA: VALERY HACKE/AFP, SIDESHOW/JANUS
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