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O crime dentro do Estado

A jornalista investigativa Cecília Olliveira destrincha a gênese, a expansão e a influência política das milícias no Rio

O crime dentro do Estado
O crime dentro do Estado
Pesquisa de campo. A autora utilizou, como ponto de partida, uma chacina ocorrida em 2020, em Itaguaí, na Baixada Fluminense – Imagem: Lilo Oliveira e Breno Natal/Prefeitura de Itaguaí/RJ
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Entre julho de 2016 e janeiro de 2025, o Rio de Janeiro teve 450 chacinas, com um total de 1.744 mortos, como mostra o livro Como Nasce Um Miliciano – A Rede Criminosa Que Cresceu Dentro do Estado e Domina o Brasil. O livro da jornalista investigativa Cecília Olliveira é um relato impactante sobre a gênese das milícias, sua expansão e influência política.

O fio condutor do trabalho é a morte de 12 homens em Itaguaí, na Baixada Fluminense, em outubro de 2020, pela polícia. Entre eles estava Carlos Eduardo Benevides Gomes, o cabo Bené, que, após ser expulso da PM em 2009, passou a dedicar-se integralmente à milícia. O episódio serviu como ponto de partida para uma investigação que mudaria, para sempre, a forma como Cecília enxergava as estruturas de poder que controlam o Estado.

“O que faz um homem que prestou concurso para servir e proteger cidadãos decidir atravessar a linha e se tornar aquilo que jurou combater? O livro nasceu da minha obsessão em entender o caminho que transformou Bené em miliciano”, diz a autora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e cofundadora do ­Intercept Brasil.

Para realizar o livro-reportagem, Cecília foi aos territórios onde a milícia atua e ali se deparou com uma barreira invisível: o silêncio. “Nas áreas onde a milícia atua, o medo é lei”, afirma. “As pessoas são muito ressabiadas e reservadas. Elas se calam, não confiam em ninguém. Com razão, não querem correr riscos. A presença dos milicianos é constante, e qualquer conversa fora do lugar pode custar caro.”

O termo milícia foi usado pela primeira vez no jornal O Globo, em 2005, na manchete: “Milícias de PMs expulsam tráfico”. A expressão, como escreve o antropólogo Luiz Eduardo Soares na orelha do livro, “ajudou a visibilizar e a compreender o fenômeno, colocando-o na agenda pública e pautando o debate sobre segurança pública no Rio de Janeiro”.

A imprensa passou a dar atenção às denúncias de crimes cometidos pelas milícias e a revelar seus métodos de ação violentos, as extorsões e os vínculos com a política. Em 2008, a tortura sofrida por jornalistas do jornal O Dia, na favela do Batan, em Realengo, na Zona Norte, tornaria ainda mais claras as feições desse fenômeno.

Uma equipe do jornal estava na comunidade, vivendo em uma casa alugada, para mostrar a rotina dos moradores em sua convivência com os milicianos. A jornalista, o fotógrafo e o motorista foram sequestrados, mantidos em cárcere privado e torturados.

O crime chocou o País e teve repercussão internacional. Sob pressão, o governo autorizou a CPI das Milícias, que contribuiu para mostrar que as milícias não eram, de fato, um “mal menor”, como se chegou a dizer, ou uma simples “autodefesa” comunitária.

De acordo com o Instituto Fogo Cruzado e o grupo dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, entre 2008 e 2023, as milícias foram o grupo armado que mais cresceu no Rio, triplicando seu domínio territorial.

Essa nova modalidade de crime surgiu na comunidade de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, na Zona Oeste. No começo, era uma equação simples: eles adotavam, da polícia, os “valores” da ordem, disciplina e uma moral um tanto peculiar. A milícia odiava os traficantes, que destruíam famílias, e se propunha a dar, às pessoas da comunidade, uma proteção extraoficial.

Com o passar do tempo, os milicianos – dentre eles policiais civis e militares, bombeiros, guardas municipais e políticos – diversificaram os negócios.

Hoje, além de explorar de forma clandestina serviços como os de água, gás e internet, eles traficam, fazem parcerias com facções, alugam pontos de exploração para o jogo do bicho e constroem prédios. Ao mesmo tempo, extorquem os moradores.

Como Nasce Um Miliciano. Cecília Olliveira. Bazar do Tempo (224 págs., 68 reais)

Fazem, porém, tudo isso sem abrir mão do que está em seu DNA, como explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves no livro: matar por encomenda e oferecer segurança privada.

Cecília lembra que o primeiro grupo de extermínio no Rio de Janeiro, do qual se tem notícia, surgiu na década de 1960, com a execução de Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, que extorquia apostadores do jogo do bicho. Os bicheiros, cansados de perder dinheiro, resolveram pedir ajuda ao detetive da Polícia Civil Milton Le Cocq, que havia integrado a guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas.

Armou-se então uma emboscada para prender Cara de Cavalo. Mas ele percebeu a presença dos policiais, tentou fugir e houve um tiroteio, no qual Le Cocq acabou sendo morto. Para vingar o colega, os policiais decidiram matar Cara de Cavalo. Nascia assim o grupo Scuderie Le Cocq, ou os Doze Homens de Ouro, grupo de extermínio que marcou época no Rio de Janeiro. Como Nasce Um Miliciano traz perfis de vários desses grupos.

Natural de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, Cecília ­Olliveira vive no Rio há cerca de 20 anos e, apesar do retrato sombrio que apresenta, acredita ser possível, sim, atacar o problema da violência no Estado. Mas, para isso, é preciso ter coragem para mexer onde dói: “Dentro das instituições, na política de segurança, no financiamento ilegal de campanhas, no uso do Estado como instrumento privado”.

E isso, ela sabe, exige mais que boas intenções. “Exige ação coordenada, cobrança pública e disposição para romper com o que sempre se tolerou”, prossegue a autora. “Então, sim, tem jeito. Mas eu não vejo disposição política séria para que essas mudanças ocorram.” •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O crime dentro do Estado’

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