Cultura

O contador de histórias

Nascido em Mairi, no sertão baiano, Aly Muritiba cresceu sem ir ao cinema porque em sua cidade cinema não havia. Mas sempre leu e escreveu muito. E sempre soube que o mundo era vasto. Ele tanto sabia disso que, entrado na idade adulta, mudou-se para […]

Passos. Quando rodou o primeiro curta, o cineasta, nascido no sertão da Bahia, trabalhava como carcereiro
Apoie Siga-nos no

Nascido em Mairi, no sertão baiano, Aly Muritiba cresceu sem ir ao cinema porque em sua cidade cinema não havia. Mas sempre leu e escreveu muito. E sempre soube que o mundo era vasto. Ele tanto sabia disso que, entrado na idade adulta, mudou-se para São Paulo para estudar.

Foi morar com uma tia, conseguiu emprego como bilheteiro da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e, com o salário, pagou o cursinho que o colocou na Faculdade de História da Universidade de São Paulo (USP). Aos 26 anos, já casado e pai, mudou-se de novo, então para Curitiba. Desempregado, decidiu prestar o primeiro concurso público que aparecesse. Quando surgiu o concurso, era para agente penitenciário. E assim Muritiba tornou-se carcereiro.

A autenticidade dessa trajetória faz com que, invariavelmente, as profissões que antecederam sua profissão atual, de diretor de filmes e séries, ganhem destaque todas as vezes que Aly Muritiba aparece na mídia. O cineasta, obviamente, não se importa com isso, até porque foi esse o seu caminho. Só não parece achar tão excepcional assim o fato de alguém que foi carcereiro e bilheteiro carregar tanto dentro si.

“No afã diário da nossa vida, o bilheteiro de trem, o cobrador de ônibus e muitos outros profissionais que cruzam o nosso caminho são praticamente invisíveis para mim, para você. Mas, de repente, essa pessoa tem um monte de coisas para dizer. Eu era uma dessas pessoas”,­ diz, sem qualquer tom de ensinamento. “A diferença é que, nos últimos três anos, as pessoas têm me deixado falar e têm me dado as ferramentas para isso.”

Só este ano Muritiba colocou três trabalhos nas telas: a série policial Caso Evandro, sucesso do GloboPlay, e os longas-metragens Jesus Kid, premiado no último Festival de Gramado, e Deserto Particular, que estreia nos cinemas na quinta-feira 25, após ter vencido o prêmio do público no Festival de Veneza e ter sido escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional.

O diretor falou com CartaCapital, por Zoom, da Paraíba, onda roda a série Cangaço Novo, um original Amazon. Poucos dias depois, embarcaria para uma jornada de sessões, entrevistas e debates em Los Angeles e Nova York, para promover Deserto Particular para os votantes da Academia de Hollywood. Assim que terminar a série para a Amazon, tem outra engatilhada para o GloboPlay, chamada Os Emasculados em Altamira. Antes, dirigira e roteirizara episódios de Carcereiros (2017), O Hipnotizador (2017), Irmandade (2019) e Irmãos Freitas (2019).

“Quis fazer um filme que, mesmo falando de temas pesados, desse ao espectador sensações boas”

Embora seja evidente a alegria de Muritiba com o fato de ter se tornado assim requisitado, nada parece tocá-lo tanto quanto a percepção de que Deserto Particular emociona profundamente os espectadores. Ao escutar, durante a entrevista, comentários elogiosos ao filme, disse: “Ouvir esse tipo de coisa e ver a emoção do público, como aconteceu em Veneza e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um dos maiores prazeres que um realizador pode experimentar. E é a primeira vez que isso acontece comigo”.

Muritiba, antes de Deserto Particular, até tinha conhecido o sucesso, mas num círculo bem restrito. Com o curta-metragem A Fábrica (2011), que trata do universo prisional e passou por mais de 30 festivais brasileiros e internacionais, ele começou a ver que o sonho do cinema, no qual embarcara em 2007 – após fazer um curso e realizar um pequeno filme em vídeo –, talvez não fosse inalcançável.

Outros dois curtas se seguiram antes da estreia no longa-metragem de ficção, com Para Minha Amada Morta (2015), premiado em várias categorias no Festival de Brasília. A essa altura, Muritiba tinha deixado o emprego na Casa de Custódia de São José dos Pinhais, no Paraná, para viver de audiovisual. Em 2017, dirigiu a primeira série: Nóis por Nóis, para a TV Brasil.

“São 13 anos nessa trajetória, fazendo meus curtas-metragens, meus documentários, meus longas de ficção e, mais recentemente, as séries”, enumera, quase como se dissesse para si mesmo que, embora pareça que o sucesso bateu à sua porta, ele foi construído tijolo por tijolo. “Estou vivendo um momento muito bonito, de colheita das coisas que vim semeando.”

Muritiba conta que um de seus desejos, em Deserto Particular, era fazer um filme afetuoso. “Ferrugem (seu filme anterior) é um trabalho muito denso e eu queria, mesmo falando de temas sérios e pesados, fazer algo que desse ao espectador sensações boas”, diz, antes de contar que, em 2018, se pegou envolvido na espiral de ódio que tomou o País.

No ano seguinte, ele se apaixonou e, modificado por dentro, quis mexer no roteiro e deixá-lo menos violento. O corroteirista, Henrique dos Santos, que por ser negro e gay vive o preconceito na pele, chegou a contra-argumentar: “Mas as coisas são assim”. Muritiba refletiu e deu o xeque-mate: “As coisas são assim, mas no nosso filme elas podem ser do jeito que a gente quiser. Não vamos falar de como as coisas são, mas de como as coisas podem ser”.

Vem dessa escolha a delicadeza desse filme que, embora tenha a violência, o preconceito sexual e a religião como panos de fundo, pode ser definido, simplesmente, como um filme de amor.

Daniel (vivido pelo ator Antonio ­Saboya) é o policial que, após envolver-se em um episódio de violência, é afastado do trabalho. Nesse momento, ele decide sair em busca de Sara, com quem mantinha uma relação virtual e que, de repente, sumiu. A história entre os dois protagonistas começa no celular e atravessa o Brasil, de Curitiba a Sobradinho, num percurso revelador não só dos personagens, mas do próprio País.

A câmera que roça os corpos, a trilha sonora que atira o espectador para dentro da cena e as atuações autênticas são algumas das qualidades desse filme tão pouco ambicioso na aparência, mas tão ambicioso em seu propósito – aquele de mostrar que, mesmo na aridez da paisagem e dos gestos, é possível brotar a beleza.

CRÉDITOS DA PÁGINA: THEO MARQUES/UOL/FOLHAPRESS E PANDORA FILMES

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo