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O cineasta da tragédia burlesca

Na esteira da chegada de Folhas de Outono ao circuito de salas, a MUBI disponibiliza uma retrospectiva com mais de 20 títulos do finlandês Aki Kaurismaki

O cineasta da tragédia burlesca
O cineasta da tragédia burlesca
Identidades. Folhas de Outono foi premiado em Cannes. Crime e Castigo ajudou a construir a reputação do diretor. O Homem Sem Passado é um de seus trabalhos mais célebres. – Imagem: Finnkino, Imagem Filmes e Mubi/02Play
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Assistir aos filmes de Aki Kaurismaki é, um pouco, como encontrar um vira-lata que caiu do caminhão de mudança. Seus personagens são frágeis sem deixar de ser duros; mostram suas feridas e ao mesmo tempo mordem; sentem desespero, mas não perderam a esperança.

Folhas de Outono, longa-metragem mais recente do cineasta finlandês, chegou aos cinemas brasileiros, depois de ter conquistado o Prêmio do Júri do último Festival de Cannes e acumulado unanimidades no circuito internacional.

Para quem o nome de Aki Kaurismaki não diz tanto quanto o de outros autores do cinema europeu, a MUBI preparou uma retrospectiva com um conjunto de títulos que nenhum festival daqui conseguiu reunir antes.

A coleção A Arte de Ser Humano, em exibição na plataforma, já disponibiliza 24 títulos da sua filmografia, entre longas e curtas-metragens, além de videoclipes. Outros nove serão incorporados à coleção, incluindo Folhas de Outono.

A seleção abrange desde ­Crime e Castigo (1983), primeiro trabalho individual de Kaurismaki, até O ­Outro Lado da ­Esperança, premiado com o Urso de Prata de melhor direção no Festival de Berlim de 2017.

Por onde começar? Que caminho percorrer? Os obsessivos podem preferir a ordem cronológica. Mas os dispersivos que optarem pelo modo aleatório não perderão o fio da meada. Nem é preciso ver tudo para perceber tratar-se de uma obra que claramente se diferencia da multidão de filmes cada vez mais iguais.

Ao longo do percurso, identifica-se claramente uma unidade temática e estilística que, no entanto, evolui conforme o contexto histórico.

Na primeira fase, que vai dos anos 1980 ao início dos anos 1990, o diretor surrupiou o prestígio de personalidades do cânone literário para construir um repertório com nome próprio. Ele pegou emprestadas as tramas de ­Dostoievski, de Shakespeare e do menos conhecido Henri Murger para criar os muito pessoais Crime e Castigo, Hamlet Goes Business (1987) e A Vida Boêmia (1992).

Em vez da subserviência comum às adaptações de clássicos da literatura, o que esses filmes oferecem é, na verdade, um olhar para a extemporaneidade das histórias. Não se trata de atualizar os contos morais de autores do passado, mas de averiguar por que tais tramas conseguiram manter intacta sua profundidade.

Enquanto construía sua reputação, Kaurismaki expunha, aos poucos, a tragédia cotidiana, aquela que passa despercebida. Seus personagens, desde então, eram desajustados, desempregados ou gente como a gente mergulhada em existências miseráveis. A partir dos anos 2000, sua atenção se desloca para os efeitos da globalização que então se acelerava.

Seus filmes não se alimentam, porém, da depressão alheia, artimanha recorrente entre artistas com preocupação social. A tragédia abafada que ­Kaurismaki cultiva não existe sem a dimensão engraçada, burlesca e absurda.

Charles Chaplin e, às vezes, Buster ­Keaton são referências evidentes. Ambos foram gênios da fusão da comédia com a miséria e com a fragilidade. Foram também pioneiros da projeção, na tela grande, do indivíduo das multidões – aquele no qual todos nós, em alguma medida, nos reconhecemos.

O humor de Kaurismaki não é, no entanto, do tipo “pastelão”. Ele retrata mais o ordinário que o extraordinário. A comédia é um gênero popular, pois alcança o que a maioria possui: a própria miséria.

Seus personagens são desajustados, desempregados ou gente mergulhada em existências miseráveis

Do mesmo modo que fala de ­indivíduos excluídos, onipresentes em qualquer nacionalidade, o cinema de Kaurismaki faz também a crônica da Finlândia, país que integra a Comunidade Europeia e, simultaneamente, está à margem da ideia de centro que marca o bloco econômico.

Tanto a Finlândia quanto os finlandeses sofreram transformações radicais na transição do Estado de Bem-Estar Social para o chamado, de modo vago, “neo­liberalismo”. Quando vistos de forma cronológica, os filmes revelam, com clareza, os esforços fracassados de adaptação à nova ordem e a progressão – ou regressão – do proletariado para “precariado”.

Folha de Outono carrega o mesmo destino de outras trilogias do cinema, como as de Michelangelo Antonioni e ­Ingmar Bergman: a de se converter em tetralogia. O título de 2023 estende um recorte inicialmente composto de Sombras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A Garota da Fábrica de Fósforos (1990).

Neles, a história de amor reúne tipos sem muitos recursos – sejam eles de sedução física, sejam eles materiais. Ao mesmo tempo que mapeia a degradação do trabalho no correr dos anos, ­Kaurismaki trapaceia o niilismo. Reduzidos ao mínimo, ao essencial para a sobrevivência, seus personagens escapam da desumanização quando encontram outro com quem voltam a acreditar no comum.

Marcados por um estilo sem floreios e constituídos por uma cenografia minimalista – com nenhum ou poucos movimentos de câmera – e pela recorrência de atores e atrizes, os filmes do diretor são feitos da mesma matéria de suas histórias.

Mais que efeito de assinatura, o minimalismo expressa a condição de seus personagens, gente que vive em moradias estreitas, equipadas com o básico, rodando em veículos quase arcaicos. A estabilidade do estilo permite não mascarar a involução da sociedade – algo que é, de fato, uma obsessão de Kaurismaki.

Em trabalhos como o formidável O Homem Sem Passado (2002), Le ­Havre (2011) e O Outro Lado da Esperança (2017), a questão das identidades, dos racismos e da perda da hegemonia da branquitude é abordada em chave distinta do denuncismo vigente.

Nem utópico nem distópico, ­Kaurismaki acolhe seus personagens como um bom médico, alguém que sabe que o paciente não tem cura, mas insiste em receitar remédios para aliviar o sofrimento. •

Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O cineasta da tragédia burlesca’

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