Cultura

O céu é o limite

O dia em que esse nosso mundo ficou sem graça nenhuma. Por Alberto Villas

Wolinski em agosto de 1970, em Havana, durante exibição que celebrava o aniversário do Assalto ao Quartel Moncada, ofensiva que marcou o início da Revolução Cubana
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Estava aqui quieto naquela manhã quente de quarta-feira, sete de janeiro, concentrado na minha pesquisa sobre o Millôr Fernandes, quando uma bomba caiu no meu computador.

Wolinski est mort!

Não acreditei muito que Georges Wolinski tinha morrido, apesar de seus 80 anos. Morreu de quê? Coração? Acidente? Ou foi paixão?

O meu primeiro contato com Wolinski foi numa época que ninguém nem se lembra mais. Um tempo em que Mequinho era manchete. E falava-se muito em Richard Nixon, Leonid Brejnev, Mao Tsé-Tung, Ling Piao e vietcongues.

Era uma época de Salvador Allende, Emerson Fittipaldi, de Maurice Chevalier, de temporais em Bangladesh e de chamas ardendo no edifício Andraus.

Enfim, era 1972.

Conheci Wolinski nas páginas da Bondinho, uma revista feita em São Paulo e que só chegava a Belo Horizonte graças ao jornaleiro esperto da praça da Savassi, que vendia até mesmo a New Yorker, a Life e a Look.

Que maluco teria disparado sua arma quente contra o meu cartunista querido, espalhando sangue no chão da sala de reuniões do jornalzinho Charlie Hebdo?

Aqui, era um tempo, além da Bondinho, do Pasquim, do Opinião, da Rolling Stone, do Grilo e do Verbo Encantado. Época em que éramos chamados de bicho, época de curtições baratas, transas mis.

Wolinski sempre foi mais ou menos uma espécie de Henfil, um tirador de sarro, como dizíamos naquela época. Seu traço simples, curto e grosso me fazia ir religiosamente de quinze em quinze dias até a banca de Seu Benito para pegar a minha Bondinho e o meu Grilo.

Nunca mais o abandonei, desde aquele 1972. Quando deixei o Brasil e desembarquei em Paris, fui conhecer o Wolinski na Hara-Kiri, na Charlie Mensuel, no L’Humanité, jornal que ele pediu demissão assim que o editor-chefe exigiu que maneirasse com o François Mitterrand.

Esse era o Wolinski do L’Énragé, da Paulette falando um francês sacana que eu só entendia com um Petit Robert no colo.

Quando a bomba caiu no meu computador na quarta-feira, pensei com os meus botões no céu, onde ele foi encontrar seus companheiros.

Lá, certamente ele vai se dar bem ao cruzar com o Henfil e seus fradinhos, seu bode Orelhana, sua Graúna e seu Cabôco Mamadô. Vai se dar bem com o Glauco e o Geraldão, a dona Marta e o Cacique Jaraguá. Tenho certeza que Wolinski vai curtir o Amigo da Onça do Péricles e discutir Shakespeare com Millôr.

O Wolinski poeta vai amar a tal pedra no caminho do Drummond, vai entender o bom português de Manoel de Barros, vai dar uma aula-show ao lado de Suassuna e achar Mário Quintana, o maior barato. Eles passarão, eu passarinho.

Wolinski vai sentar pra escutar as histórias de João Ubaldo, as filosofias do comunista Saramago, as mineirices de Sabino, Otto, Nava, Piroli, Campos e Rubião.

Vai ouvir Tom e Vinicius cantando a tristeza que não tem fim, vai cantar com Ismael Silva os apuros do Antonico, ouvir de Cartola que as rosas não falam e vai fazer a mais perfeita tradução de nos somos mesmo exagerados.

Quiçá Wolinski trombe com o Myltainho, com o Francis, com o Lessa, com o Tarso, com o Kalili e com o grande Fausto Wolff. Deus queira que eles sentem na mesa de um bar qualquer lá no céu pra discutir a capa do primeiro número de um novo jornalzinho de humor pra esse pais que anda meio sem graça.

Wolinski Desenho de Wolinski

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