Cultura
O Brasil oculto nas sombras
O filme Mato Seco em Chamas quebra as convenções narrativas para fazer o retrato de uma nação dilacerada


Muitos filmes levam o público a lugares irreais e oferecem emoções incomuns. Poucos vão aonde a maioria mal sabe existir. É o caso de Mato Seco em Chamas, em cartaz desde a quinta-feira 23.
O longa-metragem, realizado em parceria pelo brasileiro Adirley Queirós e a portuguesa Joana Pimenta, contraria o imaginário do Brasil como terra do sol. Nas duas horas e meia da projeção, somos levados a uma jornada na escuridão, a um mergulho em um país que se oculta na sombra.
O filme apresenta o desencaixe entre ser e ver a partir de um plano didático, no qual uma mãe se despede da filha. Sentada na frente da casa mal iluminada, Léa fuma no escuro, enquanto, ao fundo, um aparelho de tevê exibe imagens cujo brilho parece irreal.
“Brasil, mostra sua cara!”, cantava Gal na abertura de Vale Tudo, quatro décadas atrás. A novela tentava, a seu modo, mostrar no espelho da tevê nossa dupla face de povo gentil e sem caráter.
Mato Seco em Chamas percorre uma via distinta. Descolado da rotina do melodrama, o filme está pouco interessado em entreter com uma história ou uma narrativa alegórica.
A narrativa é feita de asfalto esburacado e calçadas enlameadas, como os espaços em que vivem os personagens. Nesse cenário, a violência espalha-se, impregna e domina, sem precisar ser representada. Dois tiros e uma morte é o máximo que vemos.
Quase nada se sabe sobre Léa e Chitara, duas meio-irmãs que lideram um negócio clandestino de exploração e refino de petróleo em Sol Nascente, na periferia da periferia de Brasília.
O público pode estranhar a ausência de trama e a imprevisibilidade do relato. A impressão é a de que as cenas se amontoam como tijolos, articulando-se como os puxadinhos tão comuns nas periferias.
Essa lógica captura a atenção para o universo mostrado. Somos colocados, sem a falsa proteção da empatia, diante de um mundo de personagens invisibilizados e de sobrevivência improvisada.
A suspensão de convenções narrativas reflete ainda outro tipo de organização, em que as noções de lei, estado ou bem comum parecem abolidas.
Entre esses blocos fragmentados, que assumem algum nível ficcional por meio de diálogos encenados, o filme intercala duas sequências documentais, cujos impactos são fulminantes. Um culto evangélico e a sua versão laica, uma manifestação bolsonarista, atiram o Brasil na nossa cara.
No lugar do povo alegre, imaginado e idealizado por gerações e gerações de artistas e intelectuais, vemos o poço sem fundo da nossa tristeza. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Brasil oculto nas sombras”
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