Cultura

Novo e novíssimo cinema em boa convivência

O Festival de Brasília ocorre em um momento particular do Brasil

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A ação da nova curadoria do Festival de Brasília já se fez sentir nas duas primeiras noites da 49ª edição de um dos eventos mais tradicionais, e por certo o mais politizado, do País. Numa análise imediata, ainda a ser melhor verificada com o andar da programação, a linha inicial sugerida parece ser a de alinhar o material de ponta do cinema brasileiro de que historicamente Brasília é pródiga em acolher a uma intermediária e nova produção.

Ou seja, o festival não deve ficar nem subjugado pelo peso das décadas mais produtivas e influentes dessa história, nem se virar por completo à jovem geração, como se deu há dois anos. Esse equilíbrio é notório no calendário inicial que propôs um olhar de frescor e não oficial ao passado junto a um sintoma tão atual quanto revelador de um estado de coisas. Tudo isso, inevitável, atrelado a um momento muito particular do Brasil. 

No caso dessa espécie de revisão, não poderia ser outra a parte da memória do que aquela do Cinema Novo. Afinal, aqui se deu a convergência e se fez a fama dos integrantes do movimento do qual Glauber Rocha se tornou um líder oficial.

Mas tal oficialidade é um dos pontos que Cinema Novo, filme de Eryk Rocha exibido na noite de abertura fora de competição, propõe repensar não como questionamento ou condenação, mas a partir de um ponto de vista rejuvenescido. Eryk é filho de Glauber e portanto mais do que autorizado a fazer essa visita aos jovens dos anos 60. Não a faz, contudo, imbuído de poder a ele investido por óbvio conhecimento dos bastidores do período. Antes, toma da herança maior que os realizadores deixaram, seus filmes, para realizar um ensaio sofisticado e poético do que foi a força e originalidade daquela cinematografia. 

É projeto determinado pelo expediente de uso de arquivo, de pesquisa e da técnica de montagem. No caso desta, primorosa nas mãos de Renato Vallone. Mas as imagens de clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Os Fuzis, Os Deuses e os Mortos, entre outros títulos menos citados e não de menor relevância, não surgem a esmo na tela. Cria-se um fio condutor por vezes temático, outras vezes pela potência ou impacto de circunstâncias, a exemplo de personagens em movimentos de fuga, em corridas desesperadas em direção a câmera.

Cada uma delas, sabemos, continham significados no período além daqueles mais evidentes da narrativa. Simbolizavam um tempo de angústia, medo e incertezas inerente a uma ditadura. Aquela era a militar, e a de hoje? Deixa de ser um golpe? Já sabemos que é até mais complexa de destrinchar, com elites e classe média unidas. Levará muito tempo, talvez de novo cinquenta anos , para eles se darem conta, se derem, do enorme retrocesso que agora se experimenta.

Cinema Novo, o filme, não chega agora por acaso, embora o cenário tenha se acirrado desde que Eryk iniciou seu projeto. Ele assume que quer pensar o entorno através das lentes dos anos 60 e 70. Mas o filme não é do passado, ou passadista. No palco, o realizador exortou com Fora Temer, o mantra que se ouve em todos os festivais e neste também, o espírito do engajamento político renovado nas ruas, com a mesma truculência policial de cinco décadas atrás.

Na tela, os líderes do movimento, pois o filho pródigo se acerta de novo com o pai (lembre-se de A Rocha que Voa) também  questionando-o como autoridade única, falam no termo presente. Joaquim Pedro, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Saraceni, todos surgem em depoimentos de época com discursos que ainda se confirmam hoje. O sonho do cinema coletivo e criativo, destroçado e então individualizado pelo AI-5, lembra Cacá. 

O fato de Improvável Encontro se fechar em dois artistas não invalida no curta-metragem de Lauro Escorel, exibido antes de Cinema Novo, o senso de grupo. Aqui se trata da fotografia brasileira, do still de cinema e daquela do fotojornalismo, representado em sua renovação a partir dos anos 40.

Lauro é do métier do cinema, como fotógrafo eminentemente, mas também realizador. Ficou fascinado pela amizade, admiração mútuas e pelos interesses que ligaram toda vida Thomaz Farkas e José Medeiros. Fez deles seus protagonistas. 

O primeiro imigrante húngaro da família que fundou a Fotoptica em São Paulo, o outro um piauiense que fez carreira pródiga em revistas como O Cruzeiro. Um adepto da imagem mais estudada, formal, outro do clique repentino, humanista. Ambos trocaram informações, influências, e saíram revigorados e renovados dessa convivência. O diretor nos mostra seus (poucos) pontos de contato mas em especial suas diferenças que não atrapalharam, pelo contrário, moveram seus trabalhos.

Adota belo material de arquivo e não apenas está nisso o diálogo com o filme de Eryk Rocha. Havia na fotografia também uma geração querendo revolucionar a arte e o procedimento se deu muito em função do Fotocine Clube Bandeirante, em São Paulo.  Nomes como Geraldo de Barros, Jose Yalenti. Escorel planeja dar conta de todos eles em uma série de filmes. Assim como a de Rocha já está pronto para a TV. São revisões sempre bem-vindas, muito mais agora.

Na competição

Finalizado o recorte de memória histórica da abertura, entrou-se na noite de quarta no primeiro título da disputa pelos Candangos. Rifle, assim simples e significativamente, é obra de distante pressuposto documental pois procura dar conta de uma situação real de especulação de terras no interior do Rio Grande do Sul, com não atores e situações rotineiras.

São os pampas, onde o diretor Davi Pretto, do híbrido documental Castanha, foi encontrar donos de pequenas fazendas que resistem a pressão de grandes empresários, ávidos por plantar soja no local. Em uma dessas propriedades trabalha o rapaz Dione. Para proteger as terras e a família que damos como sua por algum tempo, ele pega em armas e deambula atrás dos alvos, os veículos dos que querem usurpa-los. Encontra personagens, como um velho solitário que também prega a resistência.

Dito assim, parece trama clara, linear, mas Pretto adiciona um tom de mistério, por vezes fantástico. Deixa mais as imagens, do que a voz do seu calado protagonista, explicarem, ou não, aquele universo. É opção exigente, lacunar, mas que empresta verdadeira e genuína tensão ao drama. Não faria tão bem tudo isso sem seu protagonista, com rosto talhado e cabelos negros como os iranianos.

A citação não é casual e o diretor agradece antes de tudo a Kiarostami nos créditos. Ao primeiro Kiarostami, dos filmes no Irã como E a Vida Continua e Através das Oliveiras. Rifle é seu Através dos Pampas, mas não perde de vista uma condição predatória, como em Aquarius, em outro contexto faz também. As várias influëncias inegáveis, também do iraniano Rafi Pitts ou do argentino Lisandro Alonso, não diminui a vitalidade e densidade do filme. Articulam-se, pelo contrário, muito bem a proposta do diretor e seu estranho cenário.     

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